Não, não foi um evento musical, mas teve música. E dança. E animação. E cor. E risos. Mas também houve momentos de emoção e de lágrimas a escorrer pela face. É que a Confraria do Bucho e Tripas do Pego é uma extensão do bairrismo de ser pegacho. E uma música que diz muito aos pegachos emociona-os, assim como quando recordam alguém, querido, que partiu, ou simplesmente um dos momentos mais altos de homenagear cinco casas, e pessoas, que ao longo dos anos criaram, desenvolveram e mantiveram viva esta ideia dos petiscos do Pego. E, acima de tudo, das quartas-feiras do Bucho e Tripas.
Afinal de contas, se não fossem “A Petisqueira do Pego” mais conhecida por “Pechalha”, a “Ti Beatriz” ou TiBitriz [em sotaque verbal pegacho que só eles sabem pronunciar], o “Ti Pedro”, “O Bento” e o “Claudino”, talvez o momento que se viveu na Igreja de Santa Luzia, nas ruas da aldeia e na cave da Junta de Freguesia não existisse. São, portanto, a partir de agora, Confrades de Honra.
Representantes da “A Petisqueira do Pego”, a “Ti Beatriz”, o "Claudino", o “Ti Pedro”, e “O Bento”
Comecemos pelo princípio. Porque tudo tem um princípio. O Pego tem a tradição dos petiscos e dentro do variado leque de iguarias que o porco pode dar, o bucho e as tripas, cozidos na água das morcelas e com muito sabor a cominhos tornou-se tão “normal” que, falar das quartas-feiras do bucho no Pego, passou a ser um “quase lugar-comum”.
Foi por isso que em 2018 surgiu uma nova associação no Pego. Agora já lhe chamam “Os Azuis”, porque o traje oficial é um capote azul e um chapéu de aba larga azul. Os capotes são pontuados com os cavalhinhos, em metal, tal como as casacas do rancho, lá dos anos 20 do século passado, e ao peito ostentam uma insínia que tem inscrita as seguintes frases: “Confraria do Bucho e Tripas” E “Pego – Aldeia das Casas Baixas. Desde 2018”.
Esta Confraria nasceu com o objetivo de preservar, divulgar, reconhecer e dignificar o “nosso Prato-Rei”, ou seja, o Bucho e as Tripas. É um “petisco” confecionado há décadas “pelas nossas gentes” e que torna o Pego no “destino de eleição das quartas-feiras do ano”.
Mas a confraria, sendo do Bucho e das Tripas, faz questão de dizer que, nestas quartas-feiras, “degustam-se as várias iguarias retiradas e confecionadas a partir do porco”. E não há problema nenhum em falar do entrecosto, farinheira, chouriço, morcela, passarinha e, claro, o Prato-Rei que era e continua a ser o Bucho e a Tripa e que cada casa petisqueira pode apresentar de maneiras diferentes, garantindo cada uma que o segredo fica na cozinha.
Não é por isso de estranhar que quando um novo elemento se candidata a fazer parte da Confraria, para além de gostar da iguaria, tem de assumir num juramento, perante uma vasta plateia, passar a defender os objetivos da Confraria.
E ao envergar o capote, antes de lhe ser colocada a medalha, o pin e o chapéu, sinal de traje completo de confrade, tem de assumir perante o “Chanceler-Mor” o juramento:
“Juro em consciência e honra defender em qualquer momento e lugar a gastronomia do Pego.
Juro defender as tradições, costumes e produtos da nossa aldeia.
Juro ainda manter uma relação de fraternidade, amizade e respeito entre todos os confrades.
Juro promover o bucho e tripas nem, que para isso, faça das tripas coração.”
Depois desta “aceitação” dos mandamentos o “Chanceler-Mor” faz o “decreto”: “Pelos poderes que me foram confiados, entronizo-te e dou-te poderes para representar a Confraria do Bucho e Tripas. Bem-vindo à Confraria.”
O "Chanceler- Mor" coloca a medalha ao pescoço do novo confrade e a "Grão-Mestre" o pin oficial no capote e o chapéu na cabeça. Depois, o “Chanceler-Mor” faz a entronização levando o “bordão” (uma colher de pau com 1,80 m) a bater no ombro esquerdo e depois no direito. Foram entronizados os Confrades João Seixas Carlos, Palmira Moedas e Paulo Moedas.
É assim o cerimonial, realizado na igreja de Santa Luzia com olhar atento do pároco que, antes, já tinha destacado a importância da salvaguarda das tradições e da gastronomia. É que o Padre Adelino Cardoso, quando chegou ao Pego, já lá vão uns anos, experienciou logo as quartas-feiras pegachas.
Em novembro de 2019, aquando da entronização dos confrades fundadores, já o Padre Adelino Cardoso tinha “confessado” à Antena Livre que conheceu o Pego e as traseiras da Igreja [onde existia uma das casas de petiscos que durante anos foi uma “marca” pegacha] longe de imaginar que viria a ser Pároco da aldeia. Claro que conheceu o petisco mais famoso da terra.
Na altura, o Padre Adelino deixou uma mensagem para os confrades: “Às vezes com a crítica o mais fácil é desistir. Mas não esqueçam que só não é criticado quem não faz nada”.
Neste sábado disse que as confrarias existem para promover e divulgar aquilo que, de bom, existe. Tanto o património nacional como o local. E disse o Padre Adelino que quando saem do Pego são uma embaixada da sua terra. Disse ainda ter gostado de ver a forma como os confrades das 21 confrarias convidadas para este 2.º Capítulo do Pego se levantaram com orgulho em mostrar a sua representação.
Aliás, a igreja estava cheia e tão colorida que até o Padre Adelino “pediu permissão” para tirar uma fotografia à “moldura” que tinha à sua frente.
Padre Adelino Cardoso
Entronizados os três novos confrades, foram também homenageados os confrades de honra. “A Petisqueira do Pego”, a “Ti Beatriz”, o “Ti Pedro”, “O Bento” e o “Claudino” foram agraciados com a medalha da Confraria. Eles que tiveram nos anos 30 do século passado os seus antepassados a “abrir” as tabernas para petiscar o bucho e a tripa, e que são casas, algumas, que já vão na terceira geração.
A cerimónia de entronização contou com convidados. Entre eles Alcides Nóbrega, o presidente da Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal, que começou por destacar o trabalho desta Confraria que conta com o apoio de uma Câmara e de uma Junta de Freguesia e mostra o apego ao “Pêgo”. E foi logo aí que o presidente experimentou o bairrismo dos pegachos que imediatamente o corrigiram: “Não é Pêgo, é Pégo, mas sem o acento.”
Alcides Nóbrega gracejou e aproveitou para dizer que “quem fala assim da sua terra, com coração, tem futuro”, isto a propósito da Confraria e, naturalmente, da forma como os pegachos defendem o nome da sua terra.
Depois agradeceu o convite para estar presente, apesar de a Confraria do Bucho e Tripas ainda não ser federada, e deixou a mensagem de esperança que isso possa acontecer até à realização do 3.º Capitulo. “Queremos na Federação gente que pense diferente, a panela da Federação precisa de ser mexida, para representar melhor Portugal.”
O dirigente evocou também o ato de homenagem às gentes que fazem com que se mantenham ainda as tradições. Alcides Nóbrega quer, em 2024, criar a comemoração do dia da Federação e quer nesse evento reconhecer um conjunto de pessoas “deste país, que estão sempre muito escondidas como estas aqui e que fazem com que Portugal mantenha acesa esta dinâmica e este peso na nossa economia que é a gastronomia e os vinhos.”
Alcides Nóbrega, presidente Federação das Confrarias Gatronómicas de Portugal
“Bia” Salgueiro, presidente da Junta de Freguesia, mostrava a sua satisfação pela “festa” onde estava. É que esta é uma forma de “levar mais além o Pego e trazer tanta gente boa e com sorriso.”
A presidente da Junta fez questão de pegar numa mensagem da presidente da Confraria, Daniela Canha, de dizer que as associações do Pego todas juntas podem fazer muito mais. Acrescentou que a Junta de Freguesia está presente e insistiu que se todos trabalharem para o mesmo fim, podem dizer “que o nosso Pego é lindo e para que as pessoas saibam que gostamos de receber bem. Gostamos de receber bem e dar os nossos petiscos. E, hoje, falamos aqui de Bucho e Tripas.”
"Bia" Salgueiro, presidente JF Pego
Luís Filipe Dias, o “Luís da Narcisa” ou do "Amílcar Badaguita", como é conhecido por lá, no Pego, fez questão de o dizer, que faz parte da comunidade pegacha. O vereador com o pelouro da Cultura e do Turismo saudou o tecido associativo do Pego que, “unido, tem conseguido fazer algo de extraordinário porque há muita dinâmica social nesta freguesia.” E não esqueceu o apoio que o Município concede às associações, mas esse é o compromisso das autarquias.
O vereador brincou com as pessoas da sua terra, que conhece bem, tratando-os pelos nomes ou alcunhas a “pedir” para não deixarem “morrer” as casas de petisco do Pego. Casas essas que nunca esperaram vir a dar “origem” a uma tradição e a uma confraria.
Luís Filipe Dias vincou depois o trabalho da Confraria como bandeira do concelho de Abrantes e deixou dois desafios aos confrades: “Temos uma Carta Gastronómica do Pego para terminar e temos também uma casa típica para construir, que é um desejo de muitos e muitos pegachos.”
Luís Filipe Dias, vereador CM Abrantes
Daniela Canha, a “Grão-Mestre” que é como quem diz a presidente da direção da Confraria do Bucho e Tripas, estava emocionada e não o escondeu quando subiu ao púlpito da igreja para, em primeiro lugar, agradecer a todas as associações do Pego, enumerando-as, e reforçando que “o trabalho em rede das associações está a funcionar. E só o Pego é que ganha com isso.”
Logo de seguida, agradeceu à Federação das Confrarias Gastronómicas e às 21 confrarias de norte a sul do país, representadas neste evento. “Para vocês pode ser apenas mais um momento, mas para nós, não temos palavras para explicar o que é ver esta casa, e esta terra, cheia de pessoas. E ver confrarias que visitamos desde 2018 e no prazer em que as recebemos na nossa terra para virem provar o nosso Bucho e Tripas.”
Daniela Canha, Grão-Mestre
Seguiu-se a foto de família, à porta da Igreja, onde o Rancho Folclórico da Casa do Povo do Pego, bailou duas modas, antes de dar início ao cortejo pelas ruas da aldeia até à cave da Junta de Freguesia onde iria ser servido o almoço que, à boa maneira do Pego, teve o Bucho e Tripas, uns rissóis de bucho, grão com bucho e arroz de bucho, para além das migas pegachas com entrecosto grelhado, não fossem alguns convidados “declinar” a prova da iguaria que os levou, afinal, à “aldeia das casas baixas.” Não faltou a Tigelada e a Palha de Abrantes. E não faltou animação.
O 2.º Capítulo da Confraria do Bucho e Tripas do Pego contou com a presença as seguintes confrarias: Confraria do Cabrito Estonado de Oleiros; Confraria da Caldeirada de Peixe e do Camarão de Espinho; Confraria do Frango do Campo (Oliveira de Frades); Confraria do Carneiro e das Sopas do Verde (Memória, Leiria); Confraria dos Bolos, Doces, Aguardentes e Licores de Ervedal da Beira; Confraria do Arroz Doce de Maiorca (Almalaguês, Coimbra); Confraria do Frango na Púcara (Alcobaça); Confraria do Frango da Guia (Albufeira); Confraria Gastronómica do Galo de Barcelos; Confraria do Queijo Rabaçal; Confraria da Marmelada de Odivelas; Confraria da Enguia de Salvaterra de Magos; Confraria dos Ungulados, Javali e Castanha (Vila Flor, Coimbra); Confraria do Leitão da Bairrada [padrinhos da Confraria do Bucho e Tripas do Pego]; Confraria da Sopa do Vidreiro (Marinha Grande); Confraria do Torresmo Beirão de Vila Fanca da Beira; Confraria da Pastinaca e do Pastel de Molho da Covilhã; Real Confraria da Amêndoa de Portugal; Confraria do Atum de Vila Real de Santo António; Confraria da Lampreia de Entre-os-Rios; e a Federação Nacional das Confrarias Gastronómicas (este o presidente da Federação, Alcides Nóbrega, também em representação da Confraria Enogastronómica da Madeira).
Em declarações à Antena Livre, Daniela Canha, “Grão-Mestre” da Confraria do Bucho e Tripas do Pego, explicou a importância deste segundo capítulo que representa a entrada de mais três confrades, que se juntam aos fundadores.
Desde 2018, Daniela Canha explicou que tentaram estar presentes no máximo de capítulos possível para poderem criar relações com outras confrarias. E em cinco anos, com o tempo em que estivemos “fechados” por causa da pandemia, foi conseguido um resultado que resultou neste encontro com 21 confrarias.
Daniela Canha confirmou que o processo de adesão à Federação está em marcha, mas revelou que “tem um bocadinho mais de burocracia do que aquilo que pensávamos e isso exige alguma documentação que não estávamos à espera. Mas prevemos ainda este ano ser federados.”
Questionada sobre as perguntas que as outras confrarias fazem por causa do Bucho e Tripas, a “Grão-Mestre” revela que o modo de confecionar o “produto” é mesmo uma das maiores dúvidas e até pensam que pode ser muito parecido com o bucho recheado. Uma das coisas que mais surpreende as outras “irmandades” é o facto desta Confraria ser de uma aldeia e conseguirem manter muitas atividades regulares.
Daniela Canha, Grão-Mestre
Daniela Canha confirmou que um dos próximos momentos da Confraria será a conclusão da Carta Gastronómica do Pego, um documento que está a ser “confecionado” e que pode vir a deixar uma marca para o futuro, naquilo que são as tradições da gastronomia pegacha.
E nestas coisas de gastronomia é simples, “ou ama-se ou odeia-se”, porque são sabores intensos onde não há meios-termos. Uma coisa continua a ser certa no Pego, com mais ou menos petisqueiras: “A quarta-feira é o dia de Bucho e Tripas no Pego” e há quem faça “das tripas coração” para que a tradição perdure por muitos e longos anos.
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