Portugal enfrentou duas pandemias em pouco mais de um século, mas os avanços da ciência e a comunicação evitaram que o país passasse agora por uma “devastação equivalente” à provocada pela gripe pneumónica em 1918-1919.
“Não é exagero dizer que sem a ciência e a comunicação do mundo moderno teríamos enfrentado a devastação equivalente a uma nova gripe pneumónica”, disse à Lusa o investigador Miguel Castanho, no dia em que se assinala os dois anos que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a covid-19 como pandemia.
Numa comparação entre as duas pandemias, o professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa recordou que este coronavírus começou por matar 10% dos doentes idosos, o que permitiria antever uma “expectativa de morte de 2% da população, caso o SARS-CoV-2 não tivesse sido combatido com tenacidade desde o início”.
“Estima-se que, entre 1918 e 1919, o efeito devastador da gripe pneumónica tenha sido desta ordem”, avançou o especialista, considerando que as semelhanças no combate às duas pandemias se ficam pela adoção do distanciamento social, dos confinamentos e das máscaras, assim como pelo surgimento de movimentos de resistência a essas medidas.
“Em 1918, sabia-se que se tratava de uma doença infetocontagiosa, mas nem se sabia bem se era causada por uma bactéria ou por outro agente”, lembrou Miguel Castanho, ao recordar que a descoberta do microscópio eletrónico, que permitiu ampliação suficiente para visualizar os vírus, aconteceu apenas em 1931.
Outro ponto diferenciador em relação à atual pandemia, tem a ver com a velocidade de informação que, no caso da pneumónica, espalhava-se de uma forma “mais lenta do que o vírus”.
“Em 1918-1919, o vírus alastrou rapidamente, apanhou quase todos os países desprevenidos, muitos deles saídos de uma guerra mundial, infetou a população mundial e extinguiu-se quando os sobreviventes já estavam imunizados naturalmente”, explicou o investigador do Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Já com o SARS-CoV-2 “tudo tem sido diferente”, notou, uma vez que o poder da ciência e das tecnologias de comunicação permitiu iniciar o estudo do vírus assim que surgiu, alertar rapidamente outros países, difundir o conhecimento, começar a preparar vacinas e medicamentos, fabricar máscaras eficazes em larga escala, restringir a mobilidade de pessoas e alertar populações.
“O impacto da covid-19 tem sido grande, mas minúsculo face ao que teríamos tido se ainda estivéssemos em 1918”, sublinhou.
Sobre o facto de a pandemia de 1918-1919 ter durado cerca dois anos, o mesmo tempo que a covid-19 já tem, Miguel Castanho adiantou que a gripe pneumónica demorou o “tempo ditado pelo aparecimento de pelo menos duas variantes distintas e pelo alastrar a todo o mundo”.
Em relação à covid-19, o investigador salientou que a pandemia “ainda não acabou” a nível global e está a “demorar mais” porque se está a “contrariar o avanço do vírus”, ao contrário do que aconteceu em 1918-1919.
Neste comparativo entre as duas pandemias, “também aprendemos que a História nos dá lições que não devem ser esquecidas. Em 2018 não assinalámos o centenário da gripe de 1918 e simplesmente tínhamos esquecido as doenças infetocontagiosas”, salientou Miguel Castanho, referindo que, por essa razão, as vítimas da pneumónica “morreram duas vezes: uma pelo vírus, outra de esquecimento”.
Segundo o especialista, o desenvolvimento de novos medicamentos antivirais e antibióticos sofreu uma “enorme desaceleração na segunda metade do século XX”, o que faz com que agora muitos países não estejam tão bem preparados quanto deviam para novos vírus e bactérias super-resistentes.
“Devemos ter em mente que esta não foi a primeira pandemia, nem será a última. Crê-se que o vírus de 1918 migrou das aves para os humanos devido a uma ligeira mudança na sua estrutura. De igual forma, o SARS-CoV-2 migrou dos morcegos para os humanos. É sempre possível que outras migrações aconteçam. Só não sabemos quando e onde”, alertou o investigador.
Já o historiador José Manuel Sobral, num artigo comparativo entre as duas pandemias publicado na revista Medicina Interna, adianta que, no caso da gripe pneumónica, a “taxa de mortalidade em Portugal foi muito superior à registada em outros países europeus”, variando entre os 60 mil mortos dos primeiros dados oficiais e os cerca de 130 mil, sem comparação com os atuais cerca de 21 mil óbitos por covid-19.
O investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa salientou ainda que “ambas as pandemias estão ligadas à mobilidade e à aglomeração humana”, com a guerra, no caso da pneumónica, a desempenhar “um papel enorme” por obrigar ao deslocamento de milhões de soldados, por vezes entre continentes, concentrando-os em aquartelamentos e trincheiras.
Já na atual pandemia, “em janeiro de 2020, por exemplo, houve mais de 1.300 voos da China para os EUA, transportando perto de meio milhão de passageiros, o que constitui uma boa indicação do modo como a mobilidade acelerada propicia a multiplicação da infeção”, refere José Manuel Sobral.
De acordo com o historiador, um outro aspeto comum entre as pandemias reside no facto de o combate aos vírus “recorrer aos mesmo tipo de medidas de caráter social”, como o distanciamento social e o confinamento.
Na segunda vaga da pneumónica em Portugal, “houve escolas fechadas, adiamento da abertura de aulas, a Universidade de Coimbra foi encerrada e o mesmo aconteceu com o parlamento, também afetado pela doença dos seus membros”, indica o artigo.
“Houve feiras e peregrinações proibidas. No entanto, a principal autoridade de saúde envolvida, o diretor-geral de Saúde Ricardo Jorge, que defendia a necessidade de isolar os doentes e de evitar o contacto físico estreito – apertos de mão, beijos, visitas a doentes – não só pensava que não havia salvação daquele vírus no isolamento total, como entendia que não se podia levar a vida económica ao colapso, devendo evitar-se o pânico e desânimo provocado por tais medidas”, refere o historiador.
No caso da pneumónica, a “pandemia surpreendeu pela sua rapidez e intensidade, pela sua elevada taxa de mortalidade, e pelo facto de atingir em especial os adultos jovens. Não havia memória de algo assim”, sublinha José Manuel Sobral.
Lusa