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Páscoa: ENTREVISTA JA: A Fé Pascal nos confinamentos pandémicos

2/04/2021 às 10:08

Nestes tempos de pandemia e de confinamentos, os templos religiosos seguem as linhas do fecho aos fiéis. Como é que um sacerdote vive estes dias de maior recolhimento e introspeção, mas simultaneamente, momentos que têm uma importância enorme para os cristãos. As perguntas foram respondidas por Francisco Valente que, com 60 anos de idade, tem a seu cargo as Paróquias de Santiago de Montalegre, Alcaravela e Mouriscas.

Jerónimo Belo Jorge

 

Estamos numa época [Quaresma] de recolhimento e introspeção. Como é que que um Padre vive estes tempos, em nome da saúde pública, de afastamento dos fiéis?

A Quaresma é um tempo muito importante na vida da igreja, um tempo de renovação e revitalização que pretende tocar-nos na totalidade do nosso ser, tanto humanamente como cristãos. Assim, é também um tempo fundamental para todos os filhos da igreja, mesmo uma oportunidade, para reforçar o sentido do caminho que se deseja percorrer com novas forças, novo entusiasmo e encorajamento. Diz-nos que sempre podemos avançar para alcançar novas metas.

Se a pandemia e a sua gravidade nos obrigou a alterar os nossos ritmos e formas de viver, não eliminou a Quaresma, ela continuou a estar presente e a trazer-nos desafios. O Espírito de Deus é dinamismo permanente, deste modo ela fez-nos as propostas do fundamental neste novo contexto.

O cultivo da interioridade, nesta circunstância, pode ser um desafio, tivemos até um tempo mais dilatado. A contenção do consumo sem desviar olhos de quem perdeu muito do essencial que tinha. O fortalecimento do espírito relativamente à corrente que nos arrasta tantas vezes de forma inconsciente.

A comunidade é um elemento fundamental para a vivência da nossa fé, este afastamento constitui motivo de muita tristeza, sabemos, e sei, que é uma realidade temporária e que, mesmo não estando acompanhado numa presença física, nunca me senti isolado da comunidade e continuo, mas de outro modo, a acompanhar as suas vivências.

As pessoas estavam habituadas a ver-nos em cada dia com o nosso frenesim e correrias para estarmos em todo lado, tornámo-nos “mais invisíveis”, mas os laços da comunhão sempre se mantiveram e fortaleceram até nalguma saudade, tenho bem presente que caminhamos sempre juntos na aventura da vida.

As celebrações litúrgicas têm, para muitas pessoas, uma importância extrema. Sente que este “afastamento” prejudica esta ligação aos atos de Fé, mais públicos?

As celebrações litúrgicas são encontro da comunidade, são a reunião da família, unida pelos laços da fé, por isso não só são importantes, mas absolutamente necessárias, temos a promessa de Jesus, se dois ou três estiverem reunidos Ele está connosco.

Também somos seres sociais, precisamos de encontro, é da nossa natureza. Este afastamento, que não é desligar, isso não é natural e sentimo-lo com a nossa necessidade de estar juntos, de olhar nos olhos, de sentir a força das palavras, do cumprimento próximo, amigo ou mais formal. No entanto, e apesar do distanciamento e confinamento que nos é imposto, isso não destrói a comunhão que nos une.

Sentimos falta dos actos de fé públicos, dessas manifestações de profundo sentir religioso, como as procissões e outas festividades, e que são fundamentais. Eles cimentam a comunidade, num âmbito muito mais alargado. Nem todos estão nos mesmos níveis de consciência e vivência da fé, mas em todos há o apelo e o sentimento do religioso, essas manifestações que ocorrem no espaço público têm a capacidade da inclusão e promoção na experiência religiosa, são resposta mais ou menos consciente à necessidade de Deus. Formas em que todos e cada um à sua maneira podem tocar o sagrado.

 

 "... tornámo-nos “mais invisíveis”, mas os laços da comunhão sempre se mantiveram e fortaleceram até nalguma saudade..."

 

E o Padre, dentro da sua espiritualidade, costuma celebrar a palavra para os fiéis, como se sente ao celebrar no seu íntimo?

A palavra de Deus é alimento para o crente, para todos, sendo padres ou leigos. Por isso, em cada dia a Palavra de Deus é central, como se fosse uma mesa sempre posta da qual nos aproximamos e nos alimentamos. O padre não celebra só para os outros, não exerce o seu ministério de forma profissional ou exercendo uma função. O padre celebra o encontro com Deus, escuta a voz de Deus, acolhe essa mensagem para si antes de mais e depois partilha-a com a comunidade como um dom, uma riqueza excelente e esta palavra escutada e acolhida tem a força de fermentar os ambientes.

Celebrar sozinho ou celebrar com a comunidade é acolher a presença de Deus, o mundo em que vivemos, na sua dureza, tem necessidade de que haja quem a receba e a torne presente.

 

Vamos ao caso das suas Paróquias, há muitos fiéis que, apesar de tudo, o abordam, pedem ajuda espiritual, conselhos?

Sim, as pessoas sentem necessidade de compreender e agir de um modo humano cristão, logo, em inúmeras situações precisam de luz, de capacidade de discernir, de viver a vida adequadamente. Em momentos de grande escuridão e desolação procuram o padre, não para substituir a sua inteligência, nem a sua consciência, mas para verem com maior clareza o que é o mais importante. E tanto jovens como pessoas adultas, e mesmo idosos, procuram muitas vezes este apoio no meio do turbilhão que é o estilo de vida que hoje nos envolve. Sinto que o padre, não sendo perfeito, continua a ser uma referência de confiança.

 

"Em momentos de grande escuridão e desolação procuram o padre..."

 

Procuram esse “aconselhamento” por via das tecnologias?

Entendo que as tecnologias são mais uma forma de presença, de partilha, de informação. As novas tecnologias, na pandemia que nos isolou, em muitos lugares, permitiu dar continuidade a uma ligação. No entanto, não são uma solução absoluta. No contexto da nossa realidade, verificamos que a grande maioria das pessoas que enchem as nossas igrejas e pertencem às nossas comunidades não têm acesso a esses meios.

No entanto, há alguns casos em que as abordagens são feitas através destes meios e algumas respostas ficam mais facilitadas e próximas.

Não me parece que faça sentido o uso exclusivo destes meios, como forma de relacionamento em detrimento da proximidade pessoal e social.

E a despedida dos defuntos, esta alteração nas cerimónias fúnebres, é também uma marca profunda que a Pandemia deixa?

Este é um dos pontos fulcrais, a morte e a sua vivência é de extrema importância na nossa existência. Deriva da nossa consciência de ser e atribui-nos uma grandeza particular. Por isso, os rituais da morte são tratados tão cuidadosamente e com uma presença que nos irmana na mesma condição de mortalidade, sofrimento e tristeza.
Precisamos de fazer lutos, gerir perdas…

As limitações de presença e de despedida são de tal maneira estranhas que as sentimos como agressões à nossa natureza, inquietam-nos e deixam-nos infelizes duplamente.
É uma marca muito profunda que esta pandemia nos deixa. Por isso, no contexto da morte é necessária, ainda mais agora, a proximidade possível junto dos que sofrem perdas e não pode faltar nas palavras a força da esperança na vida, que vence todas as expressões da morte.

 

"O futuro afigura-se-nos como uma realidade imprevisível."



E a Semana Santa e Páscoa, que tem uma importância muito grande da Igreja, ser vivida sem as pessoas torna-a diferente?

A Páscoa é a festa central. A mais importante na celebração da Igreja. A Páscoa é a fonte de toda a vida da Igreja e de todo o seu agir. Tudo surge da vida e ainda mais de uma vida renovada pela ressurreição de Cristo.

Felizmente que apesar das restrições podemos celebrar a Páscoa com as nossas comunidades cristãs. Há um despertar de confiança e encorajamento, consequência da vacinação que está em curso, as práticas de proteção já estão interiorizadas nos comportamentos individuais e as igrejas têm os cuidados propostos para defender as pessoas do contágio. Podemos afirmar na generalidade que são locais seguros.

A diferença que efetivamente faz diferença é a ausência das famílias que se deslocam para celebrar as grandes festividades, num ambiente familiar mais alargado. Mas mesmo aqui existe a boa consciência de que esta perda garante maiores ganhos, há um adiamento de desejo de encontro e celebração, que, com certeza, potenciará a celebração, quando as restrições estiverem ultrapassadas.

 

"A Páscoa é a festa central. A mais importante na celebração da Igreja." 

 

Está a preparar um sermão, uma sessão, diferente ou mais intenso quando a Igreja puder receber os Fiéis nas suas celebrações?

Não estou a preparar – melhor -, não preparei nada de diferente no reencontro com a comunidade. A palavra comunicada, até porque esse domingo o inspirava, foi no sentido da força de uma aliança que nenhuma pandemia poderá revogar ou pôr em causa. A fidelidade de Deus no amor pela humanidade é para sempre, é para todos, o apelo é, da nossa parte, correspondência a essa aliança.
Talvez estivesse presente alguma intensidade, mas essa é consequência da saudade e do poder sentir de mais perto o afeto que nos une e reúne como família de Deus.

Padre Francisco Valente, esta pandemia vai mudar a forma de vivermos em sociedade e até naquilo que é a nossa Fé, que são as nossas crenças?

O futuro afigura-se-nos como uma realidade imprevisível. Não somos detentores de conhecimentos, que nos permitam definir vivências claras no pós-pandemia. Ainda não alcançámos esse lugar. Não sabemos o que é viver depois desta crise estar controlada. As atitudes que possam vir a alterar-se relativamente à vida social não terão, com certeza, grandes diferenças nas vivências religiosas.
No que diz respeito à crença, ao núcleo da fé, não haverá alterações. O que poderá mudar é a roupagem da linguagem e das manifestações que sempre se adaptam à realidade humana para dizer aquilo que na essência é de sempre, é inalterável.

 

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