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CRÓNICA: «Pelo conhecimento se vive, mas por ele também se pode morrer», por Luís Barbosa

30/11/-1 às 00:00
Luis Barbosa

SALPICOS DE CULTURA...

 

Pelo conhecimento se vive, mas por ele também se pode morrer

Após ter escrito sobre aquilo a que chamei “armadilhas do saber científico”, fiquei mais sensível aos esforços, por vezes inimagináveis, que certos seres humanos fazem quando transformam a sua vida num processo em que a descoberta das coisas do mundo, se transforma na sua forma normal de viver. Existem na literatura científica imensos estudos sobre esta problemática, e opina-se muito sobre as razões que estão por detrás desta determinação. Porém, quando leio muitas dessas opiniões, não raro fico com a sensação que quem as faz, não consegue identificar as verdadeiras causas que radicam na escolha de subordinar o ir vivendo, ao esfoço de encontrar aquilo que o universo parece querer ocultar. O sentimento que quase sempre me fica é que o cientista ou investigador que tomou tal decisão sente, a partir de um determinado momento, que o ir atrás do objeto das suas pesquisas é o único sentido que encontra para a vida, mesmo que tal percurso se apresente cheio de escolhos.

Na senda dos seres famosos que podem ser catalogados com a categoria de sofredores científicos, penso que se pode integrar, com facilidade, Marie Curie. Claro que hoje, nas escolas, fala-se desta cientista realçando sobretudo o que ela descobriu. Mas porque se enfatiza o enorme ganho científico que a humanidade teve com as suas descobertas, tenho para mim que, não raro, a maioria dos alunos ficam com a sensação de que os feitos da cientista acabaram por ser coisas banais. Porém, se olharmos com cuidado para os textos que descrevem a forma como esta cientista fez a sua vida, constata-se que o ir descobrindo muita coisa sobre a radioatividade foi um processo difícil que correu paredes meias com um percurso de vida também ele muito sofrido. Claro que muitos dirão que quem corre de gosto não cansa. Aceito a expressão, e até fico muitas vezes com a ideia que provavelmente serei eu que estou a pensar o sofrimento onde ele nunca existiu.

Marie Curie, chamava-se Maria Salomea Sklodowska e nasceu em Varsóvia, foi filha de professores politicamente muito ativos no combate pela independência da Polónia. Por via deste propósito a família acabou por perder as suas propriedades e a sua fortuna, e a vida tornou-se-lhes muito difícil. A educação dos filhos decorreu quase sempre em escolas de carácter regional, e muitas vezes não oficiais. O pai, físico de formação, dedicava muito do seu tempo à educação dos filhos fazendo-o em segredo, para não ser descoberto pela polícia política. Por isso, no que respeita a Marie Curie teve grande influência nos seus gostos pelas coisas da Física. Também em segredo, não apenas porque ao tempo, as autoridades russas proibiam o ensino laboratorial em escolas polonesas, mas também porque as posses eram escassas, levava para casa os instrumentos com que ensinava os alunos na escola.

Marie Curie era católica, mas a morte de sua irmã mais velha, e de sua mãe, determinaram que se tornasse agnóstica. A ressaca da vida dura, e dos falecimentos anteriores, fizeram com que o seu sistema nervoso viesse a pagar uma pesada fatura, e a depressão acabou por acontecer. A ajuda familiar, e particularmente o amor do pai, foram as suas maiores âncoras para o sofrimento que lhe bateu à porta. Porém, o contexto social em que vivia não era reconfortante. Com esforço, conseguiu ser nomeada professora tutora, mas como a sociedade não permitia que as mulheres frequentassem o ensino superior, acabou por abandonar a sua formação.

Contudo lá apareceu aqui a veia da determinação a que acima me referi, quando disse que muitos dos esforços que imaginamos terem sido sofridos por grandes figuras, são fruto mais da nossa imaginação que efetivos fenómenos vividos pelos próprios, é que, veja-se bem, contra ventos e marés, tanto ela como sua irmã, resolveram matricular-se na Universidade Volante, uma instituição de ensino clandestina com um currículo pró Polónia que desafiava as autoridades russas e admitia mulheres. Foi uma saída de casa bem dolorosa. Mais tarde a irmã partiu para Paris, mas Marie Curie, por falta de dinheiro, demorou tempo a decidir-se a acompanhá-la. Porém, embora sozinha continuou a estudar. Em 1889 voltou para Varsóvia, para viver junto do pai, mas em 1891 regressou a Paris. Então, na altura, alugou, a baixo preço, um pequeno sótão e matriculou-se na Universidade de Paris. Estudava de dia e trabalhava à noite ganhando um ordenado muito baixo. Contudo conseguiu graduar-se em Física, e com muito esforço conseguiu uma bolsa. Com este impulso sentiu-se capaz de fazer uma segunda graduação em 1894. Conheceu então Pierre Curie que se tornou mais tarde chefe de laboratórios de Física da Sorbonne, e pese embora as suas dificuldades, dedicou-se também muito ao ensino, tanto em escolas de aldeia como junto de famílias. Foi com este então também professor que acabou por casar. O casal teve duas filhas. Porém, talvez fruto da tal força interior que faz com que se não pare quando se acredita que o sentido da vida está a ser cumprido, viu a sua persistência coroada de êxito ao receber em 1903 o prémio Nobel de Física e mais tarde, em 1911, um outro nobel, mas agora da Química, tendo sido a primeira pessoa a receber duas vezes este galardão. Mas a tal armadilha do conhecimento que por vezes se destapa havia de se manifestar. Marie Curie morreu perto de SallanchesFrança, em 1934, de leucemia, Diz-se que devido precisamente à exposição maciça a radiações durante o seu trabalho. Sobretudo porque como convivia com enorme normalidade com substâncias radioativas, ia ao ponto de as transportar no bolso das suas batas quando ia para casa. O seu livro "Radioactivité" (escrito ao longo de vários anos), publicado a título póstumo, é considerado um dos documentos fundadores dos estudos relacionados com a radioatividade clássica.

Não sei se se pode dizer abertamente que Marie Curi tenha morrido porque transportava consigo material radioativo. Alguém melhor do que eu poderá fazer esse juízo. Contudo descobrir as características da radioatividade foi, desde muito cedo, um autêntico farol que norteou o caminhar desta enorme cientista. De tal maneira que mesmo a sua precária existência ao nível do dia a dia parece ter sido para ela coisa de somenos importância. Porém, bem se pode dizer que a sua força interior se expandiu com enorme energia, porque um ano após a sua morte, sua filha mais velha viria também a receber o Nobel da Química.

Despeço-me com amizade,

Luís Barbosa*

*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)

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