José Milhazes é natural da Póvoa de Varzim e entrou no seminário antes de ir para leste. Quando foi para a Rússia só sabia dizer camaradas.
O professor e jornalista que vemos todos os dias na SIC a comentar o conflito armando na Ucrânia esteve em Abrantes, na Biblioteca Municipal António Botto, perante uma sala cheia, para apresentar o seu livro ““A Mais Breve História da Rússia: Dos eslavos a Putin”, lançado dez dias antes do início do conflito.
Só que, talvez já se esperasse, a conversa evoluiu mais para temas em torno do que se está a passar na Ucrânia e na Rússia e para o futuro do que para o passado, ou para as cerca de 300 páginas do livro.
A apresentação contou ainda com a presença do Vice-almirante Alberto Silvestre Correia, um abrantino com uma vasta experiência no comando de fragatas e forças navais e com a moderação da sessão a cargo da jornalista da TVI e também abrantina, Cristiana Esteves.
José Milhazes começou por dar algumas notas sobre um livro que “na situação atual não deve ser o centro das atenções, longe disso.” E depois vincou a ideia clara do motivo pelo qual havia tanta gente na sala: “vocês querem saber o que é que vai acontecer?”
Este livro foi escrito antes da pandemia e, segundo o autor, a editora teve medo que o mesmo se perdesse pelos confinamentos da pandemia por isso o seu lançamento foi sendo adiado. Só que “vimos as coisas a acontecer e decidimos agendar a edição para 13 de fevereiro”, sem saber que dez dias depois começava a escalada armada.
José Milhazes, num discurso muito fluente e bem-disposto, referiu alguns episódios que foi tendo, como o de algumas pessoas o terem acusado de, com este livro, estar a ganhar com a guerra. “Até parece que combinei isto com o Putin. Lançar o livro para depois começar a guerra para eu o vender e dividir os lucros com o Putin (risos)". E depois num tom mais sério Milhazes disse que “o livro veio num momento dramático. Daria tudo para o que aconteceu não tivesse acontecido.”
Mas entrando no tema central da sessão, José Milhazes, disse que era difícil imaginar que no início do Século XXI “um louco, um grupo de loucos, se lançassem numa coisa destas.” Ainda na sua intervenção a propósito deste conflito o jornalista referiu que “tínhamos uma União Europeia e uns Estado Unidos crentes que Putin era uma boa pessoa. No ocidente acreditavam que Putin não ousaria fazer isto, mas fez. Mas atenção que a Rússia não é Putin.”
Num olhar sobre a base para esta guerra, José Milhazes acredita que Putin “fez isto de uma fora muito má e baseada em factos errados. Disseram que em 48 horas ou uma semana estava tudo resolvido. E disseram que, no leste, as pessoas iam apoiar os russos. Pensavam que os ucranianos eram neonazis e que fugiam todos. Mas isso não aconteceu. E temos, agora, uma situação muito confusa e dramática.”
Na sua primeira interceção o Vice-almirante Alberto Silvestre Correia, também confessou nunca ter pensado que a Rússia entrasse pela Ucrânia que não fosse apenas pela região do Donbass. E acrescentou que o que aconteceu foram vários erros graves do ponto de vista militar. Eles [russos] nunca esperaram que a União Europeia falasse a uma só voz, assim como existisse uma voz de condenação quase no mundo inteiro. Depois destacou um trabalho muito importante desenvolvido pela presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen. Alberto Silvestre Correia vincou que os Russos “tentaram por todos os meios evitar que fossemos (NATO) fazer exercícios para o Mar Negro.” E sobre esta operação o Vice-almirante não tem dúvida alguma que “ali houve uma invasão unilateral que já tinha acontecido na Tchetchénia ou na Ossétia do Sul. Estive lá e vi o drama daquele povo. E o que fez despoletar de forma mais grave a estratégia da Rússia foi a anexação da Crimeia, com a passividade do mundo ocidental que fez acreditar que esta situação, da Ucrânia, era muito fácil.”
O militar acrescentou ainda que pelo livro percebemos que este povo é um povo que está habituado a sofrer ao longo da sua história. “Tem havido vários ditadores na Rússia e todos acabaram com uma morte estranha. Alguns não se sabe bem o que é que aconteceu. Este líder não pode voltar para trás e sabe que esta é uma guerra que não pode ganhar.”
Alberto Silvestre Correia deixou uma pergunta a José Milhazes: “se ainda há esperança para alguma solução diplomática?”
A resposta do jornalista que fez vida na Rússia foi imediata: “Esta é a pergunta mais difícil. Não é não se ver a luz ao fundo do túnel. Ainda não se vê é o túnel.
Eu quando ele invadiu considerei logo que iria além do Donbass. Ele [Putin] disse na televisão que a Ucrânia não existe. É uma invenção do Lenine e Estaline. A Ucrânia é tudo Rússia. O ocidente não reagiu na Crimeia e permitiu o avanço para esta situação. A ideia não é só a região do Donbass, é cortar o acesso da Ucrânia ao mar. Putin não vai permitir a existência de uma Ucrânia independente ao lado da casa dele. Ele vai ocupar os territórios separatistas, o rublo vai circular, os telefones vão mudar para os da Rússia. Ele não vai ocupar alguns territórios e ter ao lado inimigos.”
Já sobre a possibilidade de uma zona de exclusão ou uma fronteira como a das coreias Milhazes respondeu: “Nem acho que existisse futuro em ter uma fronteira como as coreias com capacetes azuis chineses, indianos e brasileiros que se dão com todos. A Crimeia pode ser uma moeda de troca do Zelensky quando, se alguma vez, existirem conversações de paz.”
E depois acrescentou aquilo que todos os especialistas estão a prever. “Vai ser um grande problema se a Rússia não ganhar a guerra. E Putin vai ter de explicar aos seus a situação. Ele evitou usar a palavra guerra porque essa palavra tem um outro peso a nível internacional e chamou-lhe uma coisa de operação especial.”
Em relação à parte armada deste conflito José Milhazes garantiu que “nenhuma das partes tem material inesgotável. A Rússia usa mísseis, mas eles vão acabar. Não há, por agora, vislumbre da paz. Putin quer a capitulação da Ucrânia no que ele chama desnazificação.”
José Milhazes não tem dúvidas que “os políticos pressionados por certos lobbys põem os interesses financeiros à frente da segurança. E aqui houve uma reação de uma escala global. Não sabemos o que pensar se eles não podem usar outro tipo de armas. Que o senhor Putin tenha dó dos filhos e netos.”
O Vice-almirante avançou depois noutro segmento. Há uma questão que existe e que é a resiliência de militares e de um povo. “O povo russo tem informação real do que está a acontecer? Os próprios soldados russos sabem o que está a acontecer? A maior parte são jovens e podem não ter as motivações dos seus generais que estão em Moscovo.” E depois, sobre o armamento o Vice-almirante deixou a garantia que “neste momento os ucranianos têm uma maior regeneração militar do mundo. O material ocidental está a ser decisivo para o exército ucraniano.”
O Jornalista voltou a responder e a referir que “a maioria do povo russo está com Putin, principalmente os que viveram na União Soviética. Os jovens estão por carreirismo, alguns por opção e outros porque não podem ter outro pensamento por causa dos mecanismos repressivos. O povo. Introduziram na cabeça do povo esta ideia de que a Rússia é o salvador da humanidade. Há muitos russos convencidos que a Rússia foi libertar a Ucrânia. Há casos em que os filhos ucranianos dizem aos pais russos o que está a acontecer e estes deixam de lhes falar porque pensam que eles foram infetados.”
José Milhazes acredita que para mudar o estado das coisas na Rússia tem de ser algo palaciano. “Pode haver os que queiram ir mais depressa e com mais força. E depois há os outros que perderam a vida luxuosa que tinham e começaram a ser párias. Ninguém os cumprimenta na rua porque sabem que são russos. A Rússia só para quando tiver baixas de 80 mil soldados e oficiais e que pode mudar alguma coisa. Atualmente terão perdido 15 mil. E não se percebe muito bem como e que perdem tantos oficiais.”
Milhazes acrescenta que os russos, na generalidade, podem é ficar incomodados por isto estar a demorar muito mais do que aquilo que eles prometeram.
O jornalista afirmou depois que “se a Rússia ganhar na Ucrânia vamos ter uma nova temporada. Como na Netflix. Ele [Putin] vai até onde o deixarem ir. A seguir vai para a Moldava e Transnístria."
O Vice-almirante acrescentou uma informação militar que é a dificuldade de ocupar um território da dimensão da Ucrânia. “Uma coisa é a Ossétia ou a Crimeia outra é a Ucrânia. Iam ficar muito tempo muito ocupados com uma guerrilha que ali iria acontecer. E militarmente vai ser difícil ter uma vitória porque o ocidente está a alimentar as forças da Ucrânia.
José Milhazes disse depois que há coisas a ter em linha de conta. Por exemplo, a cultura russa é uma grande cultura e de raiz europeia. O problema é que a intelectualidade não dirige o país e se calhar ainda bem. Os diários de Dostoievski tem pensamentos extremistas e que até podem servir de base a esta situação na Ucrânia.
Quanto a uma crescente russofobia, os russos não têm culpa desde que não violem as nossas leis. Ninguém os chateia, mesmo aos putinistas. Mas se violas as leis do país aí é diferente. “Em Portugal Somos um país de pessoas porreirinhas. Eu já tinha ouvido falar daquele fulano da câmara de Setúbal quando ele veio para cá.”
E depois sobre as implicações da guerra na Ucrânia no resto da Europa Milhazes não tem dúvidas que “os nossos governantes estão a mentir. Vamos passar por muitas dificuldades. Poderemos ter de renunciar a determinados prazeres e privilégios. Se não abdicarmos do croissant todos os dias poderemos chegar ao ponto de não termos de cereais e de só poder comer o croissant aos domingos.
Nós estamos em guerra e é preciso explicar isso às pessoas. Porque se as pessoas protestarem pelos preços a união europeia pode rebentar e o Putin ganha e bate palmas.”
E depois sobre o acolhimento de refugiados da Ucrânia disse que “esta hospitalidade vai ser uma hospitalidade longa e as pessoas podem começar a revoltar-se por isso. Mas temos de nos mentalizar que são os pais e maridos daquelas pessoas é que nos estão a defender.”
E se o Putin morresse agora? “Depende. Depende da luta pelo poder. Há um cenário que seria catastrófico que seria a desintegração da Rússia.”
E qual é papel da ONU? “A ONU morreu. Se calhar pode ser de ser preciso criar uma nova estrutura universal. É importante o trabalho deles e alimentar pessoas, mas depois há coisas que não funcionam.”
Outra pergunta feita foi sobre o posicionamento da China? “O dinheiro fala mais alto. Nós muitas vezes, não dando conta, estamos a ser vendidos. Toda a gente quer meter dinheiro ao bolso. Os políticos não leem livros de história, mas deviam. Isto é um déjà vu."
Uma outra pergunta foi feita ao Vice-almirante sobre a capacidade da Europa ao nível de defesa. E a resposta foi simples: “Sou europeísta convicto, mas a nossa defesa é um zero à esquerda. Só tem forças de ação rápidas e só servem para por lá as bandeiras dos países. Só servem para fazer grupos com cartas das nações unidades como na república centro africana. E para manter a paz.”
E depois acrescentou que só temos em Portugal “um contingente de 140 militares para força de reação rápida e tem alternado entre paraquedistas e comandos. Damos formação aos militares locais, mas não fornecíamos material militar porque a União Europeia não permite.”
Alberto Silvestre Correia acrescentou uma comparação simples: “se a união europeia fosse um edifício a defesa era uma sub-cave onde ninguém entrava. Com a presidente da comissão, Ursula von der Leyen, e com o Josep Borrell nas relações internacionais passamos a perceber que é preciso haver um investimento no setor da defesa.”
José Milhazes concluiu a dizer que mesmo vindo da espionagem Putin é um cinzentão que fez uma carreira administrativa e política. “Acho que ali houve profundos erros de cálculo a todos os níveis. Putin não estava a espera que os países do mundo reagissem assim. O ocidente não se pode meter sempre de cócoras senão aí ele vai até onde quiser. Há custos. E temos de perceber que há custos e temos de suportar estes custos.”
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