SALPICOS DE CULTURA…
“O Presente que passa, e o futuro que começa a aparecer”
Confesso que por vezes fico algo embaraçado perante reações que me parecem desfasadas da realidade. Bem sei que o momento que se vive é propício à manifestação de estados de alma mais carregados de sentimentos reservados. Contudo sou dos que vou pensando que a nossa forma de viver é algo passageira e procuro mesmo convencer-me que atrás de tempos, tempos vêm.
Estou confinado, é uma realidade, e a segunda toma da vacina só vai ocorrer lá mais para a frente. Bem, poder-me-ia sentir demasiado preso. Porém, o simples facto de poder dar umas voltas em torno da casa, de ter minha mulher como companheira, alguns animais e algumas árvores também por companhia, lá me vai ajudando a construir na mente imagens positivas que me permitem amortecer os sentimentos negativos que um aprisionamento forçado sempre faz aparecer.
O computador e o telemóvel têm-me permitido também aligeirar os sentires anteriores, porquê? Porque permitindo-me contactar alguns dos amigos com quem ia bebendo uns cafés, lá aparecem as mensagens e as chamadas que aliviam a solidão.
Contudo, noto que alguns desses amigos, que sempre conheci como pessoas despreocupadas, transmitem-me agora preocupações face ao futuro que me deixam a pensar. Claro que entendo razoável que todos nós nos possamos interpelar face à incerteza das coisas da vida. Mas o que aqui está em causa é sentir que para alguns está a ser mais importante não ter do presente a verdadeira dimensão, pensar o passado como algo a esquecer e expressar a ideia que o negro é a cor que tingirá os dias que por aí estão a aparecer.
Longe de mim ser crítico em relação ao que cada um sente face à vida. Era o que faltava. Porém, não quero deixar de expressar a ideia que penso que viver antecipadamente amargurado é caminho para que apareça a tal alma sofredora, que se alimenta da não esperança. Por mim, procuro então criar atividades que me tirem da rotina a que o confinamento obriga, e vou escolhendo leituras que me ajudem a dissipar a tristeza. Vítor Rodrigues tem sido um dos autores que me tem acompanhado no propósito anterior. Gosto de o ler, porque falando sem rodeios das coisas da vida, consegue sempre transmitir mensagens de esperança.
Desta vez, o livro que dele tenho na mão tem por título “Passagens Interiores”. A obra é de pequeno volume e na contracapa diz-se que o autor, não pretendendo descobrir verdades ou respostas definitivas,procuracontudo que da relação com o universo das pessoasque sofrem (o autor é psicólogo) apareçam sinais de melhorias através dos quais o sofrimento se vá desvanecendo para que, a pouco e pouco, essas pessoas sejam capazes de afirmar a sua própria alegria, afim de conseguirem até transmitir profunda beleza à humanidade.
Dos tópicos que retive da leitura da obra sublinhei dois que me pareceram interessantes. O primeiro vem expresso na página 34 num texto titulado “O Presente: o Único Momento Real”. Diz o autor: “Diz-se que Buda afirmou que uma das principais razões para não sermos felizes consiste no facto de não vivermos no presente”. O segundo está retido na página 35 e Vítor Rodrigues afirma:
“De modo geral, a ansiedade é sempre fruto da antecipação de alguma coisa que não está a acontecer, mas pode vir a acontecer. A tristeza, por outro lado, resulta habitualmente da experiência passada de perdas sentidas como irremediáveis e da impressão de impotência, derrota, perante elas. A frustração repetida é uma das formas de tristeza (e também de agressividade) mais conhecidas.”
Bem, que fico com a impressão que alguns dos tais amigos que me telefonam, e que referi mais acima, parecem cada vez mais desligados do presente e a ancorar as suas expetativas no futuro imprevisível, é um facto. Aqui dou razão a Buda, e quanto ao que diz Vítor Rodrigues na citação anterior, entendamo-nos, quem sou para contrariar as suas afirmações, porque aqui fala o terapeuta que tem formação especializada na matéria em causa.
Por mim, vou reter o que Buda terá deixado dito, procurando viver os dias de confinamento da melhor maneira possível, dia a dia, esperando que a crise passe e procurando não criar expetativas exageradas face a um futuro que ainda só agora está a aparecer.
Despeço-me com amizade,
Luís Barbosa*
*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)