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Entrevista: “Durante os últimos 20 anos, a NATO matou 75 mil civis. Os talibã mataram muito menos” - Bruno Neto

1/09/2021 às 09:28

Bruno Neto, 42 anos, natural de Tramagal. Em maio rumou até Kandahar, no Afeganistão, e é para terminar o seu trabalho lá que pretende voltar, assim que estiverem reunidas as condições de segurança. É gestor de operações humanitárias e faz desta atividade a sua vida há mais de 18 anos. Já viveu na Jordânia – onde tinha projetos na Síria, no Líbano, no Egito e na Palestina - , nas Honduras – com projetos em Honduras, Nicarágua e El Salvador - , Angola, Congo, na Serra Leoa (durante o Ébola), Moçambique e Mongólia. Kandahar é a sua nova casa.

Com o Afeganistão na ordem do dia, foi sobre essa experiência que falámos e lhe damos conta nas próximas linhas.*

 

Como surge mais esta “aventura” na tua vida, agora no Afeganistão?

Eu fui para o Afeganistão em maio. Estava a trabalhar em Portugal já há dois anos e como em Portugal não havia grandes oportunidades e eu ainda ainda não tenho grande respeito institucional por aqui, quer a nível financeiro, quer mesmo de trabalho, abri o site de trabalhos internacionais e vi Kandahar. Não era só o Afeganistão, se fosse em Cabul eu não iria, mas Kandahar, por razões históricas e pela situação que já se estava a viver e que eu sabia que iria viver, não foi difícil ficar motivado para ir. Passei por vários processos de seleção e depois de um mês de testes e entrevistas, acabei por ser escolhido.

 

Nesta fase, viveste no Afeganistão quanto tempo?

De maio até final de julho, foram três meses.

 

Como é que sentiste o pulso da comunidade? Havia receios ou o sentimento dominante era a esperança?

Em termos pessoais, a minha forma de me relacionar com qualquer povo para onde vou, e tendo já trabalhado em tantos sítios e, em teoria, com tantas pessoas diferentes, não tenho dúvida nenhuma que a essência do ser humano é toda igual. No final do dia toda a gente quer ter comida na mesa, toda a gente quer que os seus filhos e filhas possam ir à escola, que possam ser homens e mulheres. A partir do momento em que vou para qualquer país, e o Afeganistão não foi exceção, a forma de eu me apresentar é como uma pessoa normal, é como alguém igual. E eu fui tratado da mesma forma que eu tratei as pessoas. Receberam-me, acolheram-me bem... a primeira vez que fui ao mercado para comprar roupas tradicionais, ninguém queria aceitar o meu dinheiro porque aquilo que eu estava a fazer era para eles uma honra. Eu queria comprar roupa, um chapéu, uns sapatos tradicionais e as pessoas não queriam mesmo receber o meu dinheiro.

 

É isso que fazes sempre, tentar logo inserir-te na comunidade onde estás, nos seus usos e costumes...

Sim porque eu não vou para um país para emigrar, ou seja, eu não vou ficar lá, sou quase como um visitante. Eu não me envolvo em questões políticas de fundo, eu não vou para esses países para fazer uma análise ou julgamento existencial, comportamental ou mesmo civilizacional. Portanto, o meu objetivo é ajudar a salvar vidas, é potenciar os projetos que nós temos, chegar a mais pessoas, melhorar o nível de vida. A partir desse momento, eu faço aquilo que eu analise que seja necessário para ter mais sucesso no meu propósito. Por exemplo, quando vivi no Médio Oriente, nunca tirei os brincos, nunca senti que fosse necessário. No Afeganistão, antes de aterrar, eu tirei os brincos porque achei que iria ser mais respeitado. Não vou para lá com a ideia de mudar qualquer tipo de mentalidade mas talvez possa, através da atitude, influenciar através da conversa, do diálogo e da abertura. Quando nós nos sentimos iguais, na base, podemos compreender um bocadinho melhor as diferenças.

 

Sentiste que já havia algum medo de que os talibã pudessem voltar ao poder?

As pessoas têm medo da guerra, as pessoas têm medo de morrer, têm medo de terem piores condições de vida, têm medo de passar fome, têm medo dessas coisas todas. Se formos muito frios a analisar a situação, durante os últimos 20 anos, a NATO matou 75 mil civis. Os talibã mataram muito menos. Portanto, quando falamos do que é a que as pessoas querem, as pessoas não querem é morrer. As pessoas não querem viver conflitos. Ainda que, para o resto do mundo, esta transição tenha sido bastante rápida, ou melhor, que pensem que a transição não iria ser tão rápida, a verdade é que para eles, e para mim que estava lá, isto aconteceu de forma lógica. Durante 20 anos temos um sistema que não funciona, um sistema que alimentar oligarquias, que alimenta a pobreza extrema, que não construiu nada (algumas estradas) mas nada em termos de hospitais, em termos de escolas. Portanto, nestes últimos 20 anos, os triliões de dólares que chegaram ao país, foram apara alimentar as próprias estruturas e empresas ligadas a estas operações, bem como uma oligarquia afegã. Para as pessoas normais, o que querem é não morrer, eles querem é ter paz.

 

Isso quer dizer que a presença das forças estrangeiras não era bem vista...

Não, claro que não. Porque a presença das forças estrangeiras sempre foi a mudança da mentalidade através da parte bélica e não é com bombas que nós levamos direitos humanos. Não é com ataques indiscriminados que nós metemos as pessoas, mais ou menos, com um sentido democrático ou de mudar comportamentos. Isso faz-se com programas de educação, faz-se com programas de acompanhamento, faz-se lado a lado e nunca contra.

 

Dá para acreditar, de alguma maneira, que desta vez o regime talibã venha mais moderado e que respeite os direitos humanos, essencialmente das mulheres?

Sem dúvida nenhuma que estes talibã não são os mesmos de 2001/2002. Mesmo que haja muita gente a querer fazer passar essa ideia, não são e há várias evidências que o retratam. Ou seja, a comunicação é diferente, a forma de lidar com entidades externas é diferente, a forma de lidar entre eles é diferente. Houve aqui um upgrade para uma outra coisa. Nós não sabemos. Tivemos quase que uma campanha eleitoral por parte dos talibã a dizer o que queriam e o que não queriam fazer. Até agora, a maior destas intenções têm sido respeitadas e eu vou sempre falar no “até agora”. Sem querer fazer projeções, até agora as coisas têm estado a funcionar bem. Não houve alterações no nosso trabalho diário, as mulheres afegãs continuam a ir ao trabalho e não houve qualquer imposição de utilização de qualquer tipo de burka. Eles próprios têm dito que não querem obrigar. Até agora, as coisas têm estado a ser normais. Normais, dentro do normal que estava a acontecer antes da tomada territorial.

 

Tens mantido o contacto com os afegãos?

Eu estou a trabalhar a tempo inteiro. Todos os dias tenho reuniões com as minhas equipas. Continuamos a trabalhar no terreno. Fomos das únicas organizações que não pararam de trabalhar e também por isso ganhámos o respeito destas novas autoridades locais e nacionais. Fomos das poucas que nunca parámos também durante períodos de guerra e aí ganhámos pontos, no sentido de continuarmos a poder chegar às pessoas, de continuarmos a poder prover um acesso à saúde pública e mesmo às questões mais complicadas.

 

Concretamente, qual é a tua missão em Kandahar?

Eu estou a chefiar uma base de operações. Sou responsável pela gestão e pelas vidas de quase 400 pessoas, quase 400 profissionais. Nós estamos a ajudar, anualmente, mais de uma centena de milhar de afegãos e afegãs com os nossos projetos e eu tenho a responsabilidade de gerir todas as operações, de assegurar que diariamente todos os nossos trabalhadores e trabalhadoras vão para o terreno em segurança, que estão em segurança, fiquem em segurança e regressem em segurança. Trabalham, aumentam a qualidade do trabalho e como consequência disto tudo, chegamos a mais pessoas e ajudamos a salvar a vida a mais pessoas. Ajudamos na nutrição, ajudamos no acesso aos serviços básicos de saúde, alguns serviços mais avançados e ainda a questão dos partos. Fazemos apoio psico-social, que foi algo que foi permitido que continuássemos a fazer, mesmo na questão da violência sobre as mulheres. Continuámos a trabalhar nisso tudo.

 

Se a vida no Afeganistão está a decorrer com normalidade, como é podemos interpretar as imagens de desespero que vimos diariamente nas televisões?

Houve um controlo de informação sobre Cabul. Enquanto nós, fora de Cabul, estávamos a ver o avanço, claríssimo, e todos nós sabíamos qual era o desenlace, o que ia acontecer, as pessoas em Cabul foram apanhadas de surpresa porque lhes foi negada a informação, não só pelo próprio Governo como pelos próprios media internacionais. Há muito tempo que toda a gente sabia que isto ia acontecer, mas mesmo sabendo, o Governo nunca se sentou com os talibã à mesa, tal como se sentaram os americanos e se sentou a NATO. Então, com alguma naturalidade, não foi prevista nenhuma passagem, não foi previsto nada. Sem dúvida nenhuma que havia pessoas que queriam este caos para se fazer a ligação da chegada dos talibã a este desespero. Não é justo para estas pessoas, são horrendas as imagens que vemos na televisão. Tem havido por parte das novas pessoas responsáveis pela comunicação dos talibã, como por parte dos conselheiros que têm estado neste processo, inclusivamente o Hamid Karzai [ex-presidente do Afeganistão. Foi a figura política dominante no Afeganistão desde a derrubada dos talibã em 2001 até meados da década seguinte], tal como anciãos que têm sido chamados para ajudar, todos estão a pedir calma às pessoas e a pedir para que as pessoas fiquem em casa. Inclusivamente e “por graça”, no dia 25 de agosto foi feita uma comunicação dos talibã a pedir às mulheres para permanecerem em casa porque muitos dos seus soldados e dos seus guerrilheiros não tinham ainda sido treinados nem capacitados para lidar com mulheres. Portanto, eles próprios estão a ter esta preocupação. Em qualquer revolução, passamos por momentos dolorosos, de violência, momentos de descontrolo e também de aproveitamento. E uma coisa muito clara para mim é que para aquilo que nós temos estado a ver, a maior parte previa que iriam morrer mais pessoas no aeroporto, que iria ser ainda mais problemático, mas para o caos que está, a coisa até nem tem sido demasiadamente grave. Colocando, naturalmente, as coisas em perspetiva. De referir que, neste momento, cerca de 50% da vida de Cabul foi normalizada, ou seja, 50% dos negócios estão abertos. Em Kandahar, 90% dos negócios estão abertos. Falta, naturalmente, abrir os bancos mas também há um embargo por parte dos Estados Unidos da América à utilização dos dólares e à entrada dos dólares no país, o que não deixa de ser curioso. Neste momento, há muitas entidades governamentais que ainda não estão a trabalhar de forma completa. Ainda há muitos gabinetes que ainda não estão a funcionar porque se está a formar um novo Governo e a analisar as estruturas e tudo isso. Portanto, esta normalidade demonstra também que aquilo que aconteceu nos últimos 20 anos não era assim tão diferente daquilo que está a acontecer agora. Muitas das coisas que nós vemos e que aparecem nos meios de comunicação são manipuladas. Não é pelos Estados Unidos da América saírem do Afeganistão que as mulheres vão ter mais ou menos direitos. Durante o período em que estiveram lá os americanos, daquilo que eu vi nas ruas, das mulheres no Afeganistão, relativamente à utilização da burka, a um certo controlo social e em termos comportamentais, era exatamente igual àquilo que se esperaria de um sítio bastante conservador. Não é só pela questão dos talibã, porque até agora temos visto exatamente o contrário, mas é também uma questão cultural e do momento civilizacional deste país. Não querendo condicionar as análises, o Afeganistão é um país que foi barbaramente ocupado pelos britânicos, foi ocupado pela União Soviética, foi ocupado pelos americanos e é um país que foi ocupado por uma força chamada talibã, que não existia ou não era relevante e que foram criados, alimentados e brutalmente financiados pelos americanos. Seja com os talibã, seja com o que for, o Afeganistão precisa de apoio, as pessoas precisam de apoio para continuarem a viver e precisamos de dar a mão, especialmente à sociedade civil. Isto para que possam continuar a ser ativos, para que possam continuar a querer construir um país e é a altura, creio eu, de ser o próprio Afeganistão a construir-se a ele próprio. Com cooperação e apoio das entidades externas porque nunca será pela força que nós vamos mudar mentalidades. Isso são as técnicas do século XIX e século XX. Creio eu que já não estamos nessa altura. Quando vemos operações militares que não têm mais do que a parte bélica, não há programas aliados, não podemos esperar grande alteração. Vemos é exatamente o contrário, que é um processo em que as pessoas são colocadas em ilhas, em que começam a criar cada mais preconceitos em relação ao outro e este, que é um comportamento humano perfeitamente normal, havendo um isolamento destas pessoas, os diálogos e as pontes acabam. É altura de construirmos pontes e não de as demolirmos.

 

Pensas voltar ao Afeganistão?

Naturalmente. Eu tenho contrato de trabalho, esta é a minha vida e estou habituado a trabalhar em situações complexas. Não tenho nenhum complexo de herói, ou seja, não irei para o Afeganistão enquanto não houver condições mínimas de segurança mas estou habituado a trabalhar em climas de insegurança. Com alguma naturalidade, irei voltar assim que seja possível e sei que aquilo que eu faço pode também ajudar de alguma forma a melhorar o país e a melhorar a vida de muitas pessoas.

 

*A entrevista a Bruno Neto foi feita antes do dia 31 de agosto, data limite da retirada das forças norte-americanas do país e antes dos atentados junto ao aeroporto

Patrícia Seixas

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