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Entrevista JA: “Foram-se os anéis, ficámos com os dedos e agora não sabemos o que fazer com eles” - Fernando Moleirinho

4/02/2022 às 09:46

Fernando Moleirinho, aos 77 anos, tomou posse no dia 15 de janeiro como Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sardoal. A eleição teve lugar no dia 18 de dezembro e a única lista que se propôs a eleições obteve 56 votos dos 63 Irmãos votantes, havendo ainda a contagem de seis votos em branco e um voto nulo. Fernando Moleirinho, que passou pela direção de quase todas as instituições do concelho e foi presidente da Câmara durante 20 anos, substitui no cargo Anacleto Batista.

Por Patrícia Seixas

 

O que o levou a fazer lista para a Direção da Santa Casa?

Se tivesse sido há uns 10 ou 15 anos, eu viria para aqui com outro espírito porque entendia que ainda tinha muito para dar a esta instituição. O espírito que me animava nessa altura não é o mesmo de agora. Agora é uma tentativa de recuperar esta casa. Procurei rodear-me de pessoas com quem já trabalhei, em quem tenho absoluta confiança nas qualidade de trabalho e inteligência. É que eu fui criado aqui. Quando isto ainda era um hospital, eu morava aqui a 100 metros e trabalhava cá um enfermeiro que tinha um filho da minha idade com quem eu brincava. Já rapazote vinha para aqui ajudar quando eram as festas porque assim eu podia dançar de borla. Na altura tínhamos que pagar 10 escudos e eu não tinha esse dinheiro. Mas era a Santa Casa e havia uma união muito grande de todos os sardoalenses. É esse espírito que eu gostava de recuperar. Naquela altura, quando era para dar à Misericórdia, as pessoas davam com alegria, com gosto e vinham trabalhar. Havia uma adesão muito grande até porque as pessoas reconheciam os méritos do hospital que trabalhava para a comunidade.

Tudo isto me animou mas, muito sinceramente, se estas pessoas não aceitassem vir comigo, eu também não tinha vindo. Mas ainda temos outro problema. É que antes, ser Irmão desta instituição era complicado. As pessoas até faziam a sua inscrição mas não eram admitidas. Saber que havia gente interessada também me deixou animado e um dos primeiros atos desta Mesa Administrativa foi despachar 27 processos que estavam aí. Agora há 200 ou 300 Irmãos mas a maioria são pessoas que não residem cá. Só cá vinham quando era para votar ou quando eram convocadas as tropas. Estavam todos ligados a um determinado tipo de famílias. Isto tornou-se quase um clube privado de acesso limitado. Também temos que tomar medidas quanto a isso. Isto vai contra tudo o que é o espírito de uma Santa Casa da Misericórdia, especialmente esta. Foi tudo isto que me tirou do meu sossego e da vida que já tinha para voltar a cumprir horários.

 

É, portanto, um espírito de missão...

Absolutamente. Estou com espírito de missão, de servir esta instituição e, acima de tudo, servir o Sardoal, que foi o que sempre procurei fazer.

 

A Santa Casa da Misericórdia de Sardoal ainda tem muito património?

Sim, tem. O que acontece é que o património que a Misericórdia tem, em termos de valor e em termos comerciais, vale pouco. É um património que se baseia essencialmente em propriedades agrícolas, que estão a render muito pouco, e património urbano que são casas bastante degradadas em que algumas delas, dadas são caras. Daí termos que pensar noutras fontes de financiamento e noutras soluções que não estamos neste momento a vislumbrar. É que todo o país atravessa uma crise bastante profunda a este nível.

 

Mas já teve muito…

Esta instituição era, muito provavelmente, uma das mais ricas da Diocese de Portalegre – Castelo Branco. Acontece que, neste momento, será das mais pobres. O património que lhe dava essa força e credibilidade foi, em poucos anos, desbaratado de uma forma que não deveria ser. Quando, numa instituição como esta, se pensa em vender ou alienar parte do património, deveríamos ter sempre em mente que o dinheiro que se iria fazer deveria ser sempre rentabilizado numa outra coisa qualquer que tornasse mais fácil o lucro. Mas isso não aconteceu.

 

Vendeu-se para “tapar buracos”?

Exatamente. O problema é que os buracos que foram tapados, agora estão todos a descoberto outra vez. E uma vez perguntei ao senhor Provedor de então o que é que fazíamos aos dedos depois de vendermos os anéis. É que se vendermos no setor produtivo, tudo bem apesar de poder falhar (é sempre um risco), agora se vendermos para pagar salários, alguma coisa está mal. Um trabalhador, nesta instituição ou noutra empresa qualquer, não pode estar à espera que vendam património para lhe pagar o salário. Ele produziu para que o salário lhe seja pago. E isso não aconteceu aqui. Alienaram património para pagar salários e, neste momento, esta instituição, que poderia ser um local onde se pudesse respirar, isso não acontece. Passamos os dias a fazer contas porque o vencimento de um funcionário, para mim, é sagrado. Ainda para mais neste tipo de trabalho em que as pessoas não podem andar desmotivadas.

 

Ainda há muita gente a doar património à Santa Casa?

As duas últimas doações de que eu tive conhecimento, são prédios que estão em ruínas. Neste caso, é bom que os vendamos porque não temos dinheiro para os recuperar. Temos que os alienar rapidamente, antes que se degradem mais, e esperamos que quem os possa comprar sejam pessoas ou empresas que possam ali investir até porque ficam mesmo na avenida principal da vila. Neste momento já nem estamos a vender o prédio, propriamente dito, mas sim a localização.

 

Já disse que é uma casa que conhece bem. Como encontrou o ambiente dentro da instituição?

A primeira coisa que fiz enquanto Provedor foi reunir com o pessoal. Por parte dos utentes, a maioria deles conhece-me bem, e senti sempre que havia alegria. No dia da votação, e isto é curioso, uma utente veio à janela e do lado de dentro disse-me: «Estamos todos aqui a rezar por si». Isto é muito gratificante. São pessoas que me conhecem, eu fui professor dos filhos deles, e tenho uma ligação afetiva muito grande com todos. Com os trabalhadores, acima de tudo, procurei ser honesto com eles. Eles também me conhecem e sabem que não lhes vou mentir. Quero que eles sintam a instituição e conheçam os problemas. A partir daqui, penso que podemos todos ter uma boa relação. A minha intenção é não olhar para o passado mas ainda não podemos começar do zero porque ainda estamos abaixo de zero. O objetivo é chegar ao zero para poder começar a delinear alguns projetos (alguns já os temos) e ações que não sejam muito onerosas mas com que a instituição possa lucrar.

 

Como viu os últimos tempos, algo conturbados, vividos na Santa Casa?

Eu era Irmão, nunca estive muito afastado. E era Irmão de corpo e alma. E ainda recentemente disse ao anterior Provedor que, quando vinha para as reuniões e dava a minha opinião, e muitas vezes me opunha a algumas situações, era porque entendia que havia melhores soluções. Nunca fui ouvido e fui considerado uma persona non grata porque ia refilar para as reuniões. A minha intenção nunca foi atacar A, B ou C mas sim quem estava a desempenhar um cargo que eu achava que não o estava a fazer bem. Mas fui acusado de tudo e mais alguma coisa. E muitas vezes sabíamos o que acontecia em conversas no café. Nem os funcionários estavam autorizados a falar connosco. Tinham medo, sentiam-se vigiados e tinham medo porque, se fossem apanhados a falar para mim, provavelmente sofreriam represálias. Agora não. O que eu lhes peço é para estarem atentos a estas pessoas que estão aqui e dependem de nós e precisam de nós para serem felizes. Essa é a nossa obrigação. E só podemos fazer alguém feliz se nós próprios estivermos bem. Principalmente numa casa destas. Em muitos sítios estas instituições são entendidas como a antecâmara da morte ou o último passo da nossa vida. Eu não quero que isso seja encarado assim. Gostava que as pessoas viessem para aqui porque em casa não têm as condições devidas. Entendo que mesmo que a pessoa esteja numa instituição destas, tem que ter qualidade de vida. E é essa qualidade de vida que eu tenho que lhes dar. É nisso que vamos apostar e foi isso que pedi aos trabalhadores.

 

Este é um mandato para cumprir até 2023. Dá tempo para voltar a colocar ordem na casa?

Não sei. Uma das coisas que podemos não conseguir é pôr a carruagem direitinha mas eu queria ver se, pelo menos, ela ficava apontada.

 

Pensa que se poderá prolongar no cargo de Provedor para além desta data?

Não, este é para terminar. Em 2023 há eleições outra vez e é minha intenção dar o meu mandato por terminado. Espero não sentir a necessidade de continuar. Numa comissão, porque criar comissões de Irmãos é um dos objetivos, talvez possa dar o meu contributo. Até porque nos devemos manter no ativo até podermos. O meu pai morreu com 100 anos e ele tinha esse espírito. E como me diz o meu irmão, que é mais velho do que eu, «não me falem da idade porque eu não a sinto, portanto, vamos andando».

 

Terminado o seu mandato em 2023, acredita que se perfile alguém com as características certas para assumir este cargo?

Penso que sim e tenho essa esperança. As admissões de Irmãos tendem a apontar para pessoas mais novas, pessoas com vida. Nesse aspeto, começam a estar criadas as condições para que as pessoas possam continuar e, acima de tudo, melhorar e engrandecer outra vez esta instituição, que bem precisa.

 

Mas sente que já mais interesse em torno da Santa Casa?

Creio que sim. Se há esta nova vaga de Irmãos é porque as pessoas acreditam. E antes já não acreditavam. Também espero que os benfeitores comecem a aparecer porque esta instituição vive disso. Vive do trabalho das pessoas que ainda são válidas e depende também das dádivas que as pessoas possam entregar aqui. É nesse aspeto que vamos trabalhar e apostar.

 

Havia problemas com a Segurança Social. Estão sanados?

Não sei. Mas sabe, chegar a uma casa como esta e constatar que todo o dinheiro que havia para investir, para pagar salários, foi gasto de uma forma estúpida sem uma explicação correta e sem acautelar o mês seguinte... é muito complicado. Deu-me a sensação que quem largou os cargos pensou «hás-de ficar aqui sem nada e desenrasca-te». Mas isto não é assim porque a instituição é que paga. Existem dívidas à Segurança Social que me preocupam e temos que tentar ultrapassar isso o mais rápido possível. Dia 5 de fevereiro haverá uma Assembleia Geral Extraordinária exatamente para debater isso. Vamos ter que alienar algum património para que possamos regularizar, em parte, essa situação bem como com trabalhadores e fornecedores. Há aqui tanta coisa... não imagina. Quando eu começo a pedir papéis para ver o que se deve a este e ao outro, começamos a somar e é tudo para cima de milhares de euros. É muito complicado... uma instituição como esta com uma dívida de centenas de milhares de euros... começo a pensar sobre o que é que eu estou aqui a fazer. Esta instituição devia respirar saúde financeira para que as pessoas sintam que podem receber alguma coisa. Nós temos muitos projetos mas esbarramos sempre no mesmo problema: «senhor Provedor, não há dinheiro».

 

Até 2023, e perante este cenário, não vai desmotivar?

Desmotivar não vou de certeza porque sempre lutei. Há coisas muito curiosas. É que me faltava este cargo. Fui vice-provedor durante três meses. Era professor e fui convidado a integrar uma Mesa Administrativa em que eu acreditava. Um dia, numa reunião, o Provedor chega de Lisboa com um projeto para o qual já tinha empreiteiros e tudo certo e que era para começar. Eu não concordava com a localização do projeto, que é o imóvel onde estamos, o Lar, pois a Santa Casa tem uma propriedade à saída do Sardoal que é a Baía. A Baía tem sete hectares, com uma frente de aproximadamente 200 metros com estrada. É uma propriedade linda. Uma vez ainda se falou nisso mas vender a Baía era acabar com todos os sonhos, com todas as perspetiva de futuro desta instituição. É ali que a Santa Casa pode crescer. O Lar tinha custado menos e tinha outra perspetiva de amplitude. Aqui não, ficou encafuado. Tentaram fazer ali o Centro do Dia, fizeram, mas não está acabado. Aqui as obras começaram todas mas nenhuma está acabada. Temos os meninos todos nos braços. Voltando ao início e à reunião, houve uma série de Irmãos que alinharam comigo e não concordaram com o dito projeto. É que havia aqui um Teatro Gil Vicente, velhinho, mas havia. Ao demoli-lo ficámos sem nada. E estivemos muito anos sem nada até que um presidente de Câmara conseguiu fazer aquele que está ali em baixo (como dizia o meu pai: «é a obra do regime», diz entre risos). Como resultado, demiti-me de vice-Provedor e depois fui expulso de Irmão. Juntamente comigo, o pároco, o médico e todos os que não concordaram, foram expulsos da Irmandade. Isto não é a forma de governar uma casa. Mas de todas as instituições por onde passei, faltava esta, faltava ser Provedor. Passei por todas as instituições e, curiosamente, nunca estive numa em que pudesse dizer que havia dinheiro para governar a casa. Foi assim no Grupo Desportivos “Os Lagartos”, na Filarmónica União Sardoalense, na Casa do Povo...

 

Atualmente, a Santa Casa da Misericórdia contempla um Lar de Idosos, Centro de Dia e Apoio Domiciliário...

Sim. No Apoio Domiciliário é nossa intenção criar «o Lar em casa». Ou seja, e isto é algo que me anima já há muito tempo, nós entendemos que a pessoa não precisa de sair da sua casa para ter apoio. Atualmente, o serviço domiciliário vai levar a refeição e a pessoa ali fica. Mas nós temos uma solução para quem não gosta do conceito do Lar. Para que a pessoa não se sinta tão só, a ideia é a funcionária que chega de manhã, ajuda o utente a levantar-se, a fazer a higiene e a dar-lhe o pequeno-almoço. Depois vem embora. Ao meio-dia, para além de lhe levar o almoço, acompanha o utente durante a refeição, arruma a cozinha. À tarde, se a pessoa quiser, pode vir fazer Centro de Dia. À tardinha, o funcionário da Misericórdia volta lá para o jantar, se a utente quiser, deita-o, e nesta fase de ficar sozinho durante a noite, que é muito complicado, a ideia é (e eu não sei se isto é possível mas acredito que seja) instalar uma câmara no quarto, com a autorização da pessoa. Se houver uma queda, se se sentir mal, haverá alguém deste lado a controlar e se houver algum problema, vai imediatamente um carro da instituição ver o que se passa e prestar socorro. Isto dá-lhes segurança, sentem-se acompanhados e até mesmo em termos de assaltos. Este é um sonho que temos aqui. Mas primeiro temos que combater a descrença que há em relação à Misericórdia no seio da população e depois é preciso que haja uma pessoa que não se importe de ser cobaia. Penso que é algo que poderemos fazer e que nem tem muitos custos. Outro projeto é dinamizar o Convento de São Francisco, onde era o antigo hospital, para rentabilizar aquilo que temos sem gastar muito dinheiro. Se conseguirmos luz verde da Segurança Social para avançar, penso que damos um grande passo para a solução do problema.

 

Quantas pessoas estão envolvidas nesta instituição?

Em todas as valências, são cerca de 90 utentes e 80 funcionários. Na Mesa Administrativa somos cinco e mais oito suplentes que também têm de trabalhar, incluindo os elementos da Assembleia Geral e do Conselho Fiscal. Todos têm que estar por aqui.

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