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Codiv-19: Medidas de Ricardo Jorge atuais cem anos após combate à "gripe espanhola"

4/04/2020 às 00:00
Instituto Nacional de Saúde Pública Doutor Ricardo Jorge

O visionarismo de Ricardo Jorge, diretor-geral da Saúde durante a “gripe espanhola” de 1918, está espelhado em algumas medidas que hoje são aplicadas na luta contra a codiv-19, como a recomendação do fim dos beijos e apertos de mão.

Da obrigatoriedade da notificação dos casos de gripe à aposta na higiene dos doentes, passando pela organização dos serviços de saúde e a inibição das migrações militares e agrícolas, as medidas de Ricardo Jorge, enquanto autoridade de saúde, ajudaram a minimizar os efeitos de uma pandemia que em meses fez mais baixas do que os quatro anos da I Guerra Mundial.

A ameaça não podia ser maior. Em 1918, Ricardo Jorge referia-se ao vírus – cuja agente na altura era desconhecido – como algo que “quase instantaneamente se derrama por uma cidade inteira e salta por cima de todas as barreiras”.

E perante tal adversidade, Ricardo Jorge vai mais longe, promovendo o fim de contactos como os apertos de mão e os ósculos (beijos).

A ação de Ricardo Jorge, patrono do atual Instituto Nacional de Saúde, que tem o seu nome, estende-se ainda à requisição de espaços públicos para acolher os doentes.

Em Lisboa, o Convento das Trinas acolheu 300 camas e o Liceu Camões quinhentas. Nada chegava, nem os caixões. Num só dia, contaram-se 200 enterros em Lisboa.

Francisco George, que ocupou o cargo de Ricardo Jorge entre 2005 e 2017, recorda-o como “uma figura importante, com grande prestígio no país devido à forma como tinha combatido e resolvido a peste bubónica no Porto, na viragem do século XX”.

Já como diretor-geral da Saúde, nomeado por António José de Almeida, Ricardo Jorge “tomou medidas, a mais significativa delas foi a mobilização dos quintanistas [estudantes do quinto ano] da Faculdade de Medicina para estarem na linha da frente no combate à gripe”.

“Ricardo Jorge, como diretor-geral da Saúde, enquanto autoridade da saúde em Portugal, cumpriu e fez tudo aquilo que tinha de ser feito”, afirmou, recordando que, na altura, “o país não tinha recursos”.

“Era terrível, porque não permitia financiar atividades que pudessem reduzir o sofrimento do nosso povo”, lamentou.

Fernando Almeida, presidente do conselho de administração do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), tem no seu gabinete um retrato do patrono do instituto que dirige. Sobre a sua obra, recorda “a invulgar capacidade de tentar conduzir as coisas”.

“É um homem que merecia muito mais do que teve. O trabalho que implementou foi um trabalho totalmente inovador e que, para a época, foi mal percebido, porque quem é inovador é sempre mal percebido. Foi porventura um dos homens que evitou grandes catástrofes”, considerou na altura em que se assinalou o centenário da “gripe espanhola”

Da figura de Ricardo Jorge, Fernando Almeida destaca ainda a sua “capacidade de resiliência”.

“Só pessoas com uma grande convicção é que conseguem implementar medidas como os cordões sanitários”, referiu, sublinhando que há cem anos fazia falta um diagnóstico, pois inicialmente até se pensava que a doença era provocada por uma bactéria.

A historiadora Fernanda Rollo, que se tem destacado na investigação a este período da história, considerou, na mesma altura, que “ninguém está preparado para dar resposta a uma pandemia desta natureza. Ninguém, nenhum país estava preparado”.

E recorda que “há uma continuidade de surtos epidémicos que vêm do século XIX. As pessoas não estão preparadas, não têm conhecimento nem instrumentos para lhe fazer face”.

Segundo a investigadora, o esforço do combate à pandemia acabou por ser protagonizado por Ricardo Jorge, “um dos homens que nunca é demais elogiar e outros homens que começam por chamar as atenções para as questões de saúde pública”.

Em 1918, “não temos serviços públicos organizados, as infraestruturas não estão preparadas para ter um impacto deste”, disse, acrescentando aquilo que considera determinante: “Não temos ciência, não temos conhecimento organizado para compreender, para prevenir o impacto da pneumónica em Portugal, tal como não se tinha no contexto internacional”.

A virologista e diretora do Museu da Saúde, Helena Rebelo de Andrade, referiu então, por seu lado, que algumas das medidas tomadas na altura para combater a “gripe espanhola” ainda hoje são “muito atuais”.

No início, “o que se recomenda é o doente ficar em casa, em repouso, ter uma dieta saudável, tomar tisanas, semelhante ao que hoje se recomenda”, disse

“Recomendava-se os caldos de galinha, água com açúcar, sumo de limão, de laranja, os gargarejos mentolados. E para a terapêutica para a redução da febre eram utilizadas soluções de quinino e os salicilatos”, adiantou.

Na segunda onda pandémica, em outubro, eram recomendadas para os casos graves injeções com soluções arsénicais e usadas injeções de cafeína e de adrenalina.

Na altura, Ricardo Jorge recomendou sete medidas: a obrigatoriedade da notificação dos casos, através dos delegados de saúde de todo o país, que teriam de concentrar a informação na Direção-Geral da Saúde, transmitindo-a telegraficamente, a higiene dos doentes e a inibição das migrações militares e agrícolas.

A requisição dos espaços públicos para instalação de hospitais, a organização dos serviços de saúde, a distribuição do serviço médico e farmacêutico nos distritos para atendimento dos mais pobres e a formação de uma comissão de socorro para o acompanhamento da epidemia foram outras medidas tomadas por Ricardo Jorge.

Helena Rebelo de Andrade sublinha ainda uma outra faceta de Ricardo Jorge.

“Durante a pandemia, como diretor-geral da Saúde não concorda com o fecho da fronteira com Espanha, que os espanhóis impuseram. Como não pode expressar politicamente a sua discordância, escreve nos jornais com um pseudónimo, Dr. Mirandela, para se insurgir contra o que chama de muralha da China”, contou.

A virologista não tem dúvidas de que da resposta à pneumónica foi possível tomar “muitas lições”, tendo em conta “a atualidade de algumas medidas, ainda hoje”.

A “gripe espanhola”, também conhecida por pneumónica, por conduzir à pneumonia na fase final da doença, atingiu o mundo em 1918, matando 50 milhões de pessoas. Em Portugal, a pandemia matou entre 50 mil e 70 mil pessoas em seis meses, dez vezes mais do que a I Guerra Mundial (1914-1918).

O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já infetou mais de um milhão de pessoas em todo o mundo, das quais morreram perto de 54 mil.

Dos casos de infeção, cerca de 200.000 são considerados curados.

Depois de surgir na China, em dezembro, o surto espalhou-se por todo o mundo, o que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar uma situação de pandemia.

Sandra Moutinho, da agência Lusa

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