O diploma que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), permitindo a reclassificação de solos rústicos em urbanos, para habitação, suscita críticas entre especialistas, ambientalistas e políticos, mas dificilmente será revogado, na sexta-feira, no parlamento.
O decreto-lei 117/2024, de 30 de dezembro, que procede à 7.ª alteração ao RJIGT, aprovado pelo decreto-lei 80/2015, de 14 de maio, permite a reclassificação simplificada de terrenos rústicos em urbanos, por deliberação dos órgãos municipais, desde que destinados a habitação.
A alteração ao RJIGT foi promulgada pelo Presidente da República, apesar de Marcelo Rebelo de Sousa ter considerado que a lei constitui “um entorse significativo [sic] em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local”.
No entanto, Bloco de Esquerda, PCP, Livre e PAN requereram a apreciação parlamentar do decreto-lei que flexibiliza a construção em solos rústicos, incluindo em áreas menos protegidas das reservas ecológica (REN) e agrícola nacionais (RAN), com vista à sua revogação, enquanto o PS assumiu que apenas pretende a alteração do diploma.
Eis os pontos essenciais da alteração ao RJIGT e das posições da sociedade civil, academia e partidos e movimentos sobre o diploma:
Ausência de debate e receios públicos
A alteração legislativa foi anunciada genericamente em 28 de novembro e aprovada sem debate público prévio, mas as intenções do Governo de Luís Montenegro (PSD/CDS-PP) geraram desde logo a oposição de dezenas de organizações não-governamentais (ONG) do ambiente que, no início de dezembro, lançaram um manifesto a repudiar a construção na REN e RAN, afirmando-se contra “uma agenda de promotores imobiliários”.
As organizações Associação Evoluir Oeiras, Associação Natureza Portugal/WWF, Campo Aberto, Fapas, GEOTA, Liga para a Proteção da Natureza (LPN), Quercus, Zero, SOS Quinta dos Ingleses e Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) uniram-se “em apoio à habitação pública em zonas urbanas consolidadas”, reabilitação de imóveis devolutos e “reconversão de edifícios de escritórios” para “habitação a custos controlados”.
Ainda em dezembro, 16 ONG, entre as quais A Rocha e Almargem, expressaram preocupação numa carta aberta, destacando as características naturais essenciais dos solos rústicos, “adequados para atividades agrícolas, florestais, de conservação e lazer”, e que a alteração contradiz compromissos internacionais, podendo levar à fragmentação agrícola e destruição florestal.
A Zero alertou também na altura que permitir construção em solos rústicos, na RAN e REN, coloca em causa princípios de ordenamento do território e de proteção de âmbito nacional, sendo as decisões sujeitas a interpretações diferenciadas das assembleias municipais, arriscando-se a construção em solos agrícolas e ambientalmente importantes.
Também a Quercus se manifestou então contra a flexibilização da lei por, no seu entender, acelerar riscos associados à crise climática e à especulação imobiliária.
Especialistas do Laboratório Associado Terra, que junta mais de 400 investigadores das universidades de Lisboa e Coimbra, alertaram para os riscos da urbanização descontrolada. A sustentabilidade no uso dos recursos naturais é uma premissa fundamental para evitar desastres ecológicos e económicos, avisaram.
Necessidade de revisitar o diploma
Embora no diploma se refira que foram ouvidos a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), os órgãos de governo dos Açores e da Madeira e a Ordem dos Arquitetos, após a publicação, a associação profissional defendeu que a reclassificação de solos na REN e RAN “deve ser excecional e devidamente fundamentada”, o que não está salvaguardado na nova lei.
A Ordem apelou ao Governo para que reabra e reajuste o decreto-lei, considerando ser possível melhorar a legislação e impedir que a reconversão de solos pelos municípios seja feita “num clima de desconfiança”.
Mais de 600 especialistas e antigos responsáveis políticos criticaram, numa carta aberta, promovida pela Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação, a medida do Governo, por considerarem que não resolverá a crise de habitação e prejudicará o ambiente. “Irá ainda fragmentar solo rústico essencial à nossa segurança alimentar e potenciar uma valorização súbita dos terrenos rústicos para fins imobiliários, inibindo o seu uso produtivo”, sublinharam.
Entre os subscritores, que já totalizam 2.400, destacam-se membros de vários governos do PS e do PSD, como os antigos governantes Amílcar Theias, João Cravinho, Ana Pinho, Artur da Rosa Pires, Carlos Miguel, Carlos Pimenta e João Ferrão.
Apreciação parlamentar e os seus efeitos
O BE, PCP, Livre e PAN pediram a apreciação parlamentar na sequência das manifestações públicas contra o diploma, nomeadamente dos arquitetos Aitor Varea Oro, Sílvia Jorge e Helena Roseta, alertando para um aumento dos processos especulativos já altamente inflacionados no país, o que levanta questões de transparência sobre este tipo de instrumentos agora liberalizados.
Além do repto de Roseta, também João Paulo Batalha, da Associação Frente Cívica, desafiou o parlamento a “chamar a si e travar, por via legislativa, este assalto” ao território, suscitando a revisão do decreto-lei.
Os 14 deputados que solicitaram a apreciação parlamentar consideram ainda que o conceito de valor moderado previsto no diploma levará a um aumento generalizado de preços de habitações, com exceção de Lisboa e Cascais, bem como do próprio solo rústico passível de reclassificação.
Após audições sobre o diploma nas comissões de Poder Local e Coesão Territorial e de Economia, Obras Públicas e Habitação, a apreciação será debatida em plenário, sendo votados projetos de resolução para a cessação de vigência ou propostas de alteração dos partidos.
Em caso de aprovação da revogação, o diploma deixa de vigorar a partir da publicação em Diário da República, não podendo ser recuperado na mesma sessão legislativa, mas se forem aprovadas alterações, as propostas baixam às comissões para discussão na especialidade, antes da votação final global em plenário.
BE, PCP e PAN apresentaram projetos de resolução para a cessação de vigência do diploma, enquanto o PS admitiu apenas alterações ao documento.
Principais alterações ao RJIGT
O Governo diz no decreto-lei que a maior disponibilidade de terrenos “facilitará a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis, promovendo, assim, uma maior equidade social e permitindo que as famílias portuguesas tenham acesso a habitação digna”.
O regime especial de reclassificação assegura que pelo menos 700/1.000 da área total de construção acima do solo se destina a habitação pública ou a habitação de valor moderado.
O executivo explica que não será habitação a “custos controlados”, mas casas para a classe média, “ponderando valores medianos dos mercados local e nacional, e definindo valores máximos para assegurar maior equidade”.
A alteração do RJIGT possibilita, a título excecional, a criação de áreas de construção em solos compatíveis com área urbana já existente, “continuando a vigorar a proibição de construção em unidades de terra com aptidão elevada para o uso agrícola, nos termos” da RAN, de classe A1 ou solos da classe A e B.
Passa a ser possível construir em terras com “aptidão moderada para o uso agrícola”, aptidão marginal ou condicionada “a uso específico”, ou solos com “riscos de erosão elevados” e “excesso de água ou uma drenagem pobre”.
Quanto à REN, refere-se, “continuam a ser salvaguardados os valores e funções naturais fundamentais, bem como prevenidos os riscos para pessoas e bens”.
Fica proibida a reclassificação para solo urbano de áreas no Sistema Nacional de Áreas Classificadas, zonas perigosas ou com risco de inundação, por exemplo, e, entre outras, abrangidas por programas especiais da orla costeira, aproveitamentos hidroagrícolas, cursos de água ou dunas.
No entanto, será possível construir na REN em “áreas estratégicas de infiltração e de proteção e recarga de aquíferos”, “de elevado risco de erosão hídrica do solo” e de “instabilidade de vertentes”.
A reclassificação para solo urbano “deve contribuir, de forma inequívoca, para a consolidação das áreas urbanas”, estabelece o diploma, que revoga, porém, a necessidade de demonstração da sustentabilidade económica e financeira da transformação do solo, nomeadamente quanto à “indisponibilidade de solo urbano, na área urbana existente” e do impacto da carga urbanística nas infraestruturas existentes.
Entrada em vigor do decreto-lei
O diploma entra em vigor 30 dias após a publicação, em 30 de dezembro, mas a norma com exceções à suspensão de áreas urbanizáveis já produz efeitos desde 31 de dezembro.
No documento refere-se que, tendo em conta que em 31 de dezembro “finda o prazo para a integração das regras de qualificação e classificação do solo nos planos municipais e intermunicipais de ordenamento do território”, embora se mantenha aquele prazo, “possibilita-se a realização de operações urbanísticas cuja finalidade seja habitacional ou conexa”.
O RJIGT previa, no seu artigo 199.º, que os municípios procedessem, até 31 de dezembro de 2024, à revisão ou alteração dos PDM ou intermunicipais para os adequar às regras de classificação e qualificação do solo, sob pena de suspensão das normas relativas às áreas urbanizáveis ou de urbanização programada inseridas nos planos territoriais em vigor.
A medida decorre da publicação, em 2014, da lei de bases dos solos, que distinguiu entre terrenos rústicos e urbanos, acabando com a classificação de urbanizável ou de urbanização programada, que deviam ser revistos ou alterados nos planos municipais de acordo com as suas características.
Os prazos para essa revisão foram sendo prorrogados, e a alteração ao RJIGT introduz agora exceções à suspensão automática, prevendo não se aplicar “às áreas urbanizáveis ou de urbanização programada que tenham adquirido, entretanto, as características de solo urbano”, ou “até ao termo do prazo para execução das obras de urbanização” definido em plano de pormenor ou contrato de urbanização.
Do risco da guetização aos custos para as autarquias
Em audição parlamentar, a arquiteta Helena Roseta considerou que o risco de corrupção apontado à construção em solos rústicos se combate com transparência, divulgando consultores do Governo e autarquias, e defendeu a fundamentação na mudança de usos dos terrenos.
A antiga deputada pelo PSD e PS referiu que as autarquias devem usar medidas ao seu alcance, como o agravamento do Imposto Municipal de Imóveis (IMI) para “casas vagas” há muito tempo e alertou para outro aspeto “muito perigoso”, da possibilidade de construção em áreas agrícolas, porque “vai criar guetos de trabalhadores agrícolas".
O ministro Adjunto e da Coesão Territorial assegurou, no parlamento, que não será possível construir “no meio dos campos ou da floresta”, com a possibilidade de reclassificar solos rústicos em urbanos, e que se pretende consolidar áreas urbanas.
“Não vai ser possível construir casas no meio dos campos ou no meio da floresta. A nova lei exige expressamente que seja assegurada a consolidação e a coerência da urbanização a desenvolver com a área urbana existente. O objetivo é consolidar a malha urbana, preencher vazios ou alargá-la de forma coerente. Não pode haver dispersão ou guetização”, afirmou Manuel Castro Almeida.
“Os valores médios nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto ou nas capitais de distrito são, em média, 20% mais caros que os valores máximos definidos no decreto-lei. Isto é o contrário da especulação”, frisou.
O ministro das Infraestruturas considerou, por seu lado, que a “lei dos solos” não é a “bala de prata que vai resolver todos os problemas", mas defendeu que "vai baixar os preços na habitação”.
Miguel Pinto Luz, que tutela também a pasta da Habitação, disse estar disponível para se poder “adaptar” e “melhorar” o diploma, e que aguarda por propostas do PS, que tem colocado em causa a criação de um preço de referência para os imóveis (valor mediano) que os socialistas consideram que pode fazer subir os preços de venda.
Um dos vice-presidentes da ANMP defendeu que a construção em solos rústicos das reservas agrícola e ecológica deve ser clarificada na contiguidade urbana, ou os custos recairão sobre as autarquias.
“Isso está lá quando se diz consolidação de espaço público, mas achamos que é importante clarificar isso, porque obviamente somos contra que agora no meio da […] reserva agrícola ou ecológica”, vão “construir uma urbanização, até porque” para “urbanizar há custos de infraestruturação e, em regra, quem paga esses custos são as câmaras municipais”, alertou José Ribau Esteves (PSD).
A comissão de Economia, a pedido do PSD, ouviu ainda Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, para quem o “especulador é o Estado” ao acabar, em 2014, com terrenos urbanizáveis e definir só rústicos e urbanos, bem como o urbanista Sidónio Pardal, um histórico opositor da RAN e REN.
Do excesso de solos urbanos às casas vazias
Para a deputada Joana Mortágua (BE), está por demonstrar que existe “falta de solos urbanizáveis”, quando o país tem “muito património ainda por requalificar”, bem como que “com mais terrenos para habitação o preço vai descer”.
A deputada salientou que a ANMP colocou várias questões sobre a falta de definição ao nível da RAN e REN, para se “perceber que terrenos são ou não elegíveis para a reclassificação” e questionou se o diploma tem “salvaguardas suficientes” relativamente à proteção ambiental e ausência de planeamento, que possam resultar “em tragédias”.
A socialista Marina Gonçalves (PS) questionou a inexistência ou o desaparecimento “do conceito de habitação a custos controlados para arrendamento”, proposta da ANMP, que considerou “sensata”, assumindo muitas dúvidas sobre se o conceito na lei “deva ser alterado” e “ser convertido” no “de preço moderado”.
A social-democrata Sónia Ramos elogiou a coragem governativa, pois “a crise da habitação é de facto estrutural e exige medidas imediatas” e “é necessário aumentar a oferta das casas a preços moderados”.
Para Albino Ramos, da IL, aumentar a oferta é o melhor caminho para baixar preços da habitação e a alteração tem “pontos positivos, pese embora a forma sub-reptícia como o governo” a tentou passar “pelos pingos da chuva no final do ano passado”.
Alfredo Maia destacou o respeito do PCP pelo “poder local democrático” e repudiou a ideia de que a iniciativa de apreciação do decreto-lei ou de pedir a “revogação da alteração” governamental, feita “pela calada das férias de Natal e sem qualquer discussão no parlamento”, possa ser vista como uma “suspeição sobre os autarcas e os seus órgãos”, antes radica no risco de “artificialização do solo”.
Filipa Pinto, do Livre, notou que a grave crise da habitação “pressiona de forma injusta as famílias”, mas a solução não passa por aumentar a construção em solos rústicos, antes apostar na reabilitação do património edificado degradado, incluindo mais de 700 mil casas vagas.
Marta Silva, do Chega, admitiu que o objeto da lei de promover mais terrenos urbanizáveis é “meritório”, mas alertou que, tal como está, “corre o risco de comprometer a transparência e permitir práticas que não servem de todo o interesse público, abrem a porta à desordem territorial” e até “ao agravamento do preço da habitação”.
Da sociedade civil à academia
O Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) deu parecer negativo ao decreto-lei, reconhecendo que a escassez de solo urbano pode contribuir para o aumento do preço das casas, mas essa escassez não se regista em todo o país.
O CNADS, no parecer subscrito por Filipe Duarte Santos, acrescenta que a proposta surge em “contradição frontal” com o designado “modelo europeu de intervenção urbana”, consagrado em múltiplos documentos de política e programas de “cooperação territorial europeia, de que Portugal é signatário e em que tem participação ativa”.
A responsável pelo Portal da Construção Sustentável (PCS), Aline Guerreiro, considerou que a possibilidade de reclassificação de solos rústicos é "mais um prego no caixão do ordenamento do território" e não vai baixar o preço das casas.
"A solução não é, definitivamente, a de impermeabilizar mais solo, muito menos em espaço rural", vincou, apontando que, “de acordo com dados do INE de 2021, há 12% de casas vagas face ao total de apartamentos e moradias existentes", das quais "cerca de metade estão para venda ou arrendamento", existindo "um excedente de cerca de 211 mil casas no mercado face às carências habitacionais".
A Associação Portuguesa de Urbanistas (APU) pediu ao Governo a “alteração ou revogação” do decreto-lei que altera o RJIGT, que revogou a necessidade de fundamentação para reclassificação de solos rústicos em urbanos.
Também a Ad Urbem - Associação para o Desenvolvimento do Direito do Urbanismo e da Construção defendeu que a proposta tem consequências negativas e aumenta “dúvidas e complexidades processuais”.
Os PDM "em vigor tinham perímetros urbanos sobredimensionados, muitíssimo acima das reais necessidades de urbanização e edificação, o que permitiu e até fomentou uma ocupação urbana fragmentada, desordenada”, lembrou.
Para o diretor do Centro de Estudos Geográficos (CEG), José Luís Zêzere, a construção em solos rústicos, incluindo em vertentes na REN, abre “uma caixa de Pandora” com custos no futuro, apontando 240 mortos por deslizamentos em século e meio.
“Os diferentes elementos que constituem a rede ecológica nacional têm uma coisa que se chama usos compatíveis. Há uma matriz de usos compatíveis, que diz [que] há algumas coisas que se podem fazer ali, as áreas de instabilidade de vertentes são daquelas que têm menos usos compatíveis, e bem, porque são áreas perigosas de facto”, salientou o também docente do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.
O engenheiro Pedro Bingre do Amaral considerou que a construção em solos rústicos transfere para espaço rural a especulação nos terrenos urbanos, onde os índices de construção previstos nos planos dão para “19 milhões de casas”.
O também presidente da LPN disse à Lusa não ter dúvidas sobre o resultado do diploma: “O que vamos fazer com isto é que nós, pela via fiscal, não combatemos esta especulação nos solos no perímetro urbano e vamos transferir essa especulação para o solo rústico”.
Lusa