O livro “Tradição Oral do Concelho de Constância” não é mais do que uma recolha imaterial feita junto da população mais idosa naquele território. Há muito património que não está escrito. Há muitas coisas que passavam de pais para filhos, e por aí fora, que, se não forem registados, podem perder-se com o desaparecimento da população mais velha. Por isso Anabela Cardoso começou a juntar recolhas e a classificá-las de acordo com métodos científicos definidos, e aceites, pelas academias.
Depois de algumas “oralidades” recolhidas na década de 80, o ano passado no âmbito do programa PEDIME – Valorização dos recursos TIC em contexto escolar e interação com a comunidade, foi aprovada uma candidatura para este fim.
Assim, Anabela Cardoso iniciou o projeto com uma conferência na Feira do Livro e “chamou” para a recolha os alunos do 5º e 6º anos de escolaridade. A ideia seria eles fazerem as recolhas deste património imaterial nas suas terras, junto de quem sabe contar as advinhas, as rezas, os responsos, as lendas, os trava-línguas, os provérbios. Um conjunto de informação que era preciso registar em áudio para depois passar ao papel.
Anabela Cardoso revelou que este foi um trabalho profícuo e que deixou, com toda a certeza, marcas positivas nos alunos. Haverão de se recordar destas coisas que ouviram e, quem sabe, “venham contá-las aos seus filhos ou netos”.
Nestas recolhas, que Anabela Cardoso conhece bem, não é tudo fácil. Antes de se chegar a estas pessoas mais idosas, é preciso ganhar a sua confiança para que elas contem as coisas como as aprenderam. Contar para ficar registado, pois, nalguns casos, como as cantigas, se elas não entoarem a cantiga não se conhece a melodia. E esse é um fator que não está no livro, mas que fez parte das recolhas feitas.
Anabela Cardoso revelou, na sessão de lançamento, que decorreu na Casa Memória de Camões, no dia 22 de setembro, que teve de ter autorizações, normais, para poder contactar diretamente com os alunos, através de email. Houve todo um processo que teve de ser caminhado até começarem a chegar as recolhas. E mesmo durante o processo chegou a haver momentos em que os próprios alunos questionaram a investigadora sobre as formas de melhor poderem chegar aos interlocutores.
A recolha teve como base o território do concelho, mas como havia um aluno da Linhaceira a opção foi publicar quase todos os trabalhos.
A investigadora Ana Maria Morão, que prefaciou o livro, destacou o trabalho científico da catalogação e divisão das recolhas ao mesmo tempo, que deixou a esperança que este livro possa ter sido uma semente para que mais coisas possam surgir no âmbito da salvaguarda do património imaterial. Ana Maria Morão revelou que a literatura oral, mesmo que muitas vezes seja mais desvalorizada, faz parte da literatura nacional. E neste caso funcionou como funcionava noutros tempos. Os mais velhos contam (ou ensinavam) aos mais novos.
Anabela Cardoso é técnica superior no Município de Constância e tem uma pós-graduação em património cultural imaterial. Este livro é uma edição da Câmara Municipal de Constância e teve a impressão de 400 exemplares. Numa nota prévia, no livro, o presidente da Câmara Municipal de Constância destacou a riqueza do concelho nas tradições e agradeceu a todos os que estiveram empenhados no projeto. Desde os alunos que fizeram as recolhas, a quem “contou as histórias” e à coordenadora do projeto.
Responso a Santo António (quando se perdia alguma coisa)
“Santo António se alevantou
Suas sagradas mãos lavou
Sua camisinha lavada vestiu
Seu bordãozinho agarrou
Caminho de Roma caminhou.
Jesus Cristo encontrou
Jesus Cristo procurou:
Então, beata, onde vais?
Tu comigo não virás.
Nesta terra ficarás.
As missas que disserem
Tu então as ouvirás
As coisas que perderam
Tu então as acharás”
Versão recolhida por Ana Rui e Luana Soares. Ouviram o responso pela voz de Hermínia Conceição Inácio Constantino, 75 anos, moradora na aldeia de Santa Margarida da Coutada, em 2019.
Reza - Quebranto da Lua (tirar o quebranto a bebés)
Nossa Senhora desfumou o seu menino para cheirar
e ele desfumou o meu para o quebranto da lua afastar.
E vá lá mais uma fumaça,
que é to tabaco do João da praça,
que é para ver se isto passa.
Nota: Punham-se brasas numa tenha de canudo com mato da lua, mato de S. João e anecril e passava-se a criança pelo fumo, em cruz, para retirar o quebranto da lua.
Versão recolhida na aldeia da Pereira (Santa Margarida da Coutada) por Anabela Cardoso e Tiago Lopes. Dito por Maria Odete Dimas, de 70 anos, em 2014.