SALPICOS DE CULTURA....
Ter ou não ter consciência dos perigos que se correm ao não se tomarem determinadas cautelas face à epidemia que aí anda à solta, fez-me voltar a pensar nesta coisa que é “tomar consciência”. Lembro-me que o tema já era muito estudado quando iniciei a minha carreira académica nos domínios da Filosofia, e discutisse-se o que se discutisse, fosse quem fosse que tratasse o tema, o facto é que se acabava quase sempre por se iniciar, ou acabar, as reflexões colocando a questão de saber se é possível, ou não, que o homem tome consciência dos seus atos.
Porém, o que não deixa de ser verdade é que volvidos uns quantos anos, nas conversas que vou tendo, sou confrontado com duas ideias: uma, expressa por larga maioria de pessoas, vai no sentido de afirmar que tal não só é possível, como socialmente necessário, outra, é a que considera o fenómeno difícil, embora também muitos pensem que orientar a educação para esse desígnio se torna tarefa indispensável.
Porém, debates à parte, o que para mim quase sempre se coloca como primeira questão é saber qual o entendimento que quem sobre o tema se debruça tem daquilo que é a consciência. Não sou especialista na matéria, embora sobre esta questão já tenha consumido algumas boas horas de leitura. Porém, um facto constato, é que com o andar dos tempos a problemática tornou-se transversal a vários saberes, sobretudo aos que respeitam as questões das Neurociências, e de tal maneira os estudos evoluíram que hoje, mais do que saber o que é a consciência, o que se procura saber é onde a mesma se situa.
Como não me sinto verdadeiramente esclarecido sobre o assunto acabo por ser daqueles que, nas tertúlias, tanto aceitam a ideia do que acham que esta é uma questão sem sentido, porque entendem que a consciência não existe, como a dos outros que, ao contrário, vão queimando as pestanas estudando até os modos como pensam que a mesma se manifesta no ser humano. Claro que a minha atitude é a de evitar azedumes desnecessários, embora não esconda que também tenho as minhas ideias.
Ora, o interesse por esta questão começou a ganhar lastro dentro da minha mente quando no âmbito da ligação à Filosofia, estudando as coisas da cultura grega, percebi que se algo de importante aconteceu no mundo grego foi o empenho dos seus filósofos em saber o que de facto era o homem e qual o seu desígnio enquanto ente do universo. Ainda como estudante acabei pensando que este terá, talvez, sido um dos maiores esforços que alguma vez os humanos fizeram no sentido de tornar o tal fenómeno de tomada de consciência como algo de determinante.
Hoje, no que respeita às questões filosóficas e para refletir sobre esta temática tenho, normalmente, como autores de referência, tanto Nicola Abbagnano, como Werner Jaeger. São diferentes nas suas abordagens. Um, o primeiro, fala do homem grego mais numa perspetiva de síntese histórica, outro, o segundo, prefere abordar o indivíduo grego mergulhado na cultura que ao tempo dominava a zona onde a Grécia se veio a situar.
São várias as forma que nestes autores se podem utilizar para ver em que medida o homem grego foi tomando consciência da sua própria existência, mas duas delas tiveram como modos de se afirmar, tanto o espírito crítico, como o exercício narrativo. Porquê? Porque para esse habitante do mundo antigo, quer a evolução humana, quer a organização da “polis”, ou seja, da cidade, devia fundar-se na capacidade quer de saber narrar exemplos de vidas vividas, quer manter as tradições.
É então aqui que ganha importância a temática que escolhi para estruturar este texto. Começo por fazer uma pergunta: por que razão era assim tão importante para o homem grego narrar acontecimentos e manter a visão das coisas passadas? Respondo colocando outra questão: não seria para que através desses exercícios fossem tomando consciência da sua própria existência? Para mim a resposta às duas interrogações é afirmativa. Mas ainda faço outra pergunta: e porquê insistiam em manter o passado vivo? Inquiro de novo: não seria justamente para conseguir não só saber quem eram, como aquilo que poderiam vir a ser como povo? Também aqui repondo afirmativamente.
Salto então para o presente justamente para colocar outra questão: quando hoje, no nosso sistema educativo, se põem em causa tanto a pertinência do recurso ao ensino da História, como da Filosofia, enquanto saberes que devem servir para que mais e melhor as gerações atuais tomem consciência, não apenas do que somos, mas também do que fomos enquanto povo, pode, ou não, dizer-se que estamos no caminho de uma atitude que conduz a não tomarmos consciência do que tem sido o caminhar daqueles que por aqui, neste retângulo, têm feito a sua gesta?
Volto então à forma como os gregos se foram organizando, e socorro-me mais uma vez de Werner Jaeger para sustentar melhor a minha posição. Nas suas obras o autor aborda a problemática do recurso à narrativa como um dos grandes suportes da afirmação da cultura grega clássica, dizendo que ela serviu para fazer o que para o homem grego era fundamental, que era destapar a tradição, não apenas para que melhor se fossem conhecendo uns aos outros, mas também para que melhor fossem organizando a sociedade. Numa das muitas notas que escrevi enquanto lia alguns dos livros do autor referido, deixei expressa a citação que agora faço sem contudo ser capaz de dizer em que página, e em que obra, terá o texto sido escrito. Porém, espero não cometer nenhum engano ao escrever aqui a referida nota. Diz o autor:
“Ao lado da influência imediata do ambiente, e dum modo especial, da casa paterna, que na Odisseia exerce um poder tão grande sobre as figuras de Telémaco e Nausícaa, encontra-se a enorme riqueza de exemplos famosos transmitidos pela tradição das sagas. Desempenham na estrutura social do mundo arcaico um papel quase idêntico ao que entre nós cabe à História […] As sagas encerram todo o tesouro dos bens espirituais que constituem a esperança e alimento de cada nova geração.”.
Bem, penso que o tema dá que pensar. Porém, por agora fico por aqui, não sem deixar dito que a minha esperança é que o interesse pela História e pela Filosofia volte a constituir atitude de marca de quem, neste país, tem a responsabilidade de timbrar os trilhos por onde devem andar as coisas do sistema de ensino.
Despeço-me com amizade, até à próxima semana.
Luís Barbosa*
*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)