“Esparteiros: Arte de entrelaçar” é um livro de história e acima de tudo de histórias. De muitas histórias de vida. Sandra Uva Alexandre, antropóloga, começou em fevereiro uma corrida, de ir ao encontro de uma arte que já foi a principal atividade económica de mouriscas e que nos dias de hoje tem apenas uma empresa a laborar.
A fabricação de seiras e capachos para os lagares de azeite, primeiro através do esparto, depois do cairo e, mais recentemente, de ráfia e nylon, é uma das imagens de marca de Mouriscas, que em meados do século passado chegou a ter 14 oficinas e a empregar dezenas de pessoas. Na maioria, mulheres. E havia muitas que trabalhavam em casa para vender a produção às oficinas. Bastava ter uma roda [forma] e a matéria-prima. Primeiro a corda feita de esparto e, mais tarde, o cairo.
Depois os lagares foram-se modernizando e as seiras e capachos deixaram de ter a importância vital na produção do azeite. Em Mouriscas, por exemplo, ainda há uma cooperativa de olivicultores que produz o azeite a partir das prensas com capachos. Mas são casos raros. Os lagares de linha são mais rápidos, eficientes, limpos e com menos mão de obra.
Hoje a produção a única fábrica de seiras e capachos de Mouriscas, a SIFAMECA, aponta mais ao artesanato do que aos lagares de azeite. Produz capachos e tapetes em cairo, com a técnica da arte de entrelaçar as cordas.
Página 23 do livro com mapa das oficinas de espartaria de Mouriscas
Página 153 do livro (José Lopes do Vale com as trabalhadoras e retrato de José Lopes do Vale)
E foi para salvaguardar esta arte que a Câmara de Abrantes se candidatou ao programa Tradições da EDP, em 2018, e viu ser aprovado o seu projeto. Trata-se do financiamento para a produção de um livro, apresentado esta segunda-feira, dia 16 de dezembro, e de um vídeo documental, em produção, para a salvaguarda deste património que ainda existe em Mouriscas. Paralelamente com o apoio da Associação Palha de Abrantes e da SIFAMECA têm sido desenvolvidas muitas iniciativas em torno da espartaria. Desde ações de formação com o Centro de Recuperação e Integração de Abrantes (CRIA), a outras da associação cultural Palha de Abrantes ou a visitas de estudo, com milhares de crianças a terem passado pela fábrica de Mouriscas.
Helena Gomes representante do programa Tradições da EDP, que financiou o projeto de salvaguarda da espartaria, deixou vincada a importância de não deixar perder esta arte e ficou muito satisfeita com o resultado. Aliás, fez questão de dizer que também experimentou a entrelaçar as cordas e revelou que se vivesse mais perto vinha melhorar a sua experiência.
A coordenadora do programa da EDP entrou mesmo em diálogo com a dona Maria Adília, mourisquense que fez questão de recordar a todos aqueles tempo: “Os patrões quando chegavam vindo ver quem fazia mais”.
Helena Gomes provocou ainda um momento divertido ao falar das marcas que o entrelaçar das cordas deixam nas mãos, porque não era um trabalho fácil. E a dona Maria Adília vai dizendo “era lixado” para gáudio da plateia que reagiu de forma divertida a este diálogo.
Manuel Jorge Valamantos, presidente da Câmara de Abrantes, deixou clara a importância de salvaguardar este conhecimento. “O trabalho muito duro daquele tempo [referência às dificuldades deixadas por Maria Adília] devia de nos fazer pensar naquilo que nós hoje falamos de dificuldades”.
Manuel Jorge Valamatos referiu-se ao livro agora apresentado com o mote do programa Tradições: “não há futuro sem as origens”, É, afirmou, uma homenagem aos esparteiros, aos mourisquenses e aos abrantinos. E agradeceu a todos quantos colaboraram no livro porque foi uma encomenda da Câmara de Abrantes à Associação Palha de Abrantes.
Sandra Uva Alexandre a autora do livro
Sandra Uva Alexandre, Helena Gomes, Manuel Jorge Valamtos, Pedro Matos, Abílio Ferro Faria e Lurdes Martins
Sandra Uva Alexandre é a autora do livro que tem ainda fotografia de João Jerónimo e as ilustrações de Raul Bueno. A autora explicou que esta foi mesmo uma corrida, já que o tempo que teve para a recolha, escrita e produção não foi muito. Começou em fevereiro deste ano com as conversas que teve de fazer com as pessoas das Mouriscas. E foi o primeiro registo que deixou, o facto das pessoas “abrirem as portas da sua casa, da sua vida” a uma desconhecida que ali chegou a dizer que queria fazer umas perguntas sobre aquele tema.
“Para um antropólogo é algo muito marcante deixarmos o nosso contributo para os vindouros para que fiquem com o registo de como se faz (…) porque corremos o risco de a perder no tempo”, explicou a autora acrescentado que do ponto de vista pessoal “foi algo fabuloso terem partilhado as suas vidas”.
Há muitas histórias semelhantes e que fazem a evolução dos tempos: “desde as que não aprenderam a ler e a escrever, desde as que foram para a escola e rapidamente [na quarta classe] tiveram de sair ou das que iam trabalhar para ajudar as famílias”. Sandra Uva Alexandre referiu que as pessoas com quem falou deixaram os registos não documentais desde o início do século XX, dos tempos das memórias e experiências das pessoas com quem falou.
O livro apresenta a componente de entrevistas a mourisquenses, principalmente, mulheres que trabalharam na arte de entrelaçar e apresenta também investigação documental. Os registos apontam para 1898 como o ano da mais antiga oficina de espartaria. Mas os registos da autora com moradores de Mouriscas aponta o período que vai dos anos 20 do século passado até à década de 60, altura em que a espartaria foi uma das principais atividades económicas da freguesia de mouriscas, onde chegaram a existir 14 oficinas a produzir as seiras e capachos para o país e para exportação.
O livro apresenta algumas fotografias antigas mas também algumas ilustrações que Sandra Uva Alexandre justificou por ser a forma de deixar no papel “a descrição” da arte de entrelaçar as cordas. Com ilustrações torna-se mais fácil deixar o registo deste património imaterial.
Entre muitas conversas com as pessoas de Mouriscas encontrou muitas histórias de uma história ligada a esta aldeia. Afinal Esparteiros eram nomes de famílias, era uma profissão, é o Grupo Desportivo e Recreativo e é o Grupo Etnográfico, e agora, passa a ser um livro: Esparteiros: Arte de entrelaçar. E vai ainda, em 2020, ser um vídeo.
A espartaria começou com as cordas feitas de esparto. Uma planta com caules de fibras finas mas resistentes. A planta, em Portugal, encontra-se em Trás-os-Montes e no Algarve e depois no sul de Espanha e no norte de África.
Depois passou do esparto para o cairo, cordel feito a partir da fibra do fio do coqueiro e importado da Índia.
Mais recentemente a produção passou para o nylon e para a ráfia sintética. Os capachos feitos a partir do nylon são feitos, em Mouriscas, de forma mecânica.
A SIFAMECA começou a produzir tapetes em cairo e segundo confidenciou Helena Gomes há já uma cadeia de hotéis que “adquiriu” um lote de tapetes de grande dimensão à empresa mourisquense. E deixou a mensagem para que não se fiquem por aqui e procurem outras soluções para aplicar a arte de entrelaçar.
Sendo uma edição municipal prefaciada pelo presidente da autarquia, a obra Esparteiros: Arte de entrelaçar vai estar à venda pelo valor simbólico de cinco euros nos locais habituais em Abrantes e também na Junta de Freguesia de Mouriscas.
Jerónimo Belo Jorge
Roda [forma] para fazer um capacho [ou tapete) de grandes dimensões