SALPICOS DE CULTURA…
“Corrupção! «coisa» banal?”
As “coisas” da pandemia têm as suas “coisas”. O título do texto e a frase anterior composta pela duplicação do substantivo “coisas”,foram escritos de propósito. Permitam-me as redundâncias. Mas permitam-me também que me explique. Como certamente tem acontecido com muitos dos portugueses, vou passando os momentos de confinamento procurando ultrapassar esta “coisa” que é estar em casa confinado, e penso que também como uma grande parte das pessoas, procurando que os momentos de pseudo-acalmia se transformem em “coisas” agradáveis, ou seja, sendo forçado a aprender a viver confinado, lá tenho tentado transformar o confinamento num momento de sofrimento menor. Bem, penso que através do que agora escrevi justifiquei a razão porque empreguei tantas vezes o tal substantivo “coisas”.
Para me acompanhar nesta clausura, escolhi alguns companheiros. A poesia tem-me ajudado, e um dos livros a que mais tenho recorrido éa obratitulada“800 anos de poesia portuguesa”. O livro foi editado pelo Círculo de Leitores, em 1973, e trata-se de uma antologia organizada por Orlando Neves e Serafim Ferreira. A obra contém imensas poesias de inúmeros autores portugueses, e como é uma vasta coletânea de poemas, permite muitas vezes que se procure ver em que medida encontramos neles assuntos glosados em épocas diferentes da nossa, mas que no fundo tratam questões que são temas da atualidade.
Desta vez fiz a pesquisa depois de ter assistido aos vários programas televisivos com que a nossa televisão abordou as questões da corrupção. Foi uma pesquisa curiosa porque pude constatar não só que o tema tem tido ao longo do tempobom tratamento poético, como fiquei com a impressão que os diferentes autores parecem personagens dos dias de hoje. Ou seja, muitos dos poemas que li afinal já versavam a corrupção como “coisa” corrente, e até nalguns casos, a definem como algo cuja prática era, ao tempo, uma banalidade.
Então, depois de ter passado os olhos por alguns poemas, acabei por pensar que a grande diferençaentre o que li, e aquilo a que tenho assistido na televisão, não está em aceitar a corrupção como patologia apenas do momento atual, mas algo que sendo corrente nas sociedades humanas, acaba por ser“coisa” vulgar. A questão está em verificar que a grande diferença, entre o que se passou outrora e o que se vive na atualidade, difere apenas quanto à forma sofisticada como a mesma é processada no momento atual.
Uma das autoras que tratou o tema,e que os autores da antologia elegeram para compor a obra,foi Natércia Freire. Nascida em 1919, foi estudante de música e tornou-se professora primária em 1944. Venceu o Prémio Antero de Quental por duas vezes, em 1947 e 1952, e o Ricardo Malheiros em 1955. Tornou-se também vencedora do Prémio Nacional de Poesia em 1971 e na Fundação Calouste Gulbenkian desempenhou a função de membro da Comissão de Leitura. Em 2004 morre, a 17 de Dezembro, e o seu nome é conferido a uma das artérias da cidade lisboeta. A título póstumo, é agraciada com o título de Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
Sobre “coisas” da corrupção foram coligidos pelos organizadores da antologia três poemas. Os títulos são por si sugestivos. Vejamos: em 1920 escreve “Os Suspeitos”, depois “Agiotas”, e por fim “E Levantam-se as Pessoas”.
Para ilustrar este texto escolhi dois versos de “Agiotas”. Porquê? Porque na tal busca de ver o que outrora se tenha escrito sobre corrupção, e o que da mesma se diga na atualidade, pareceu-me haver muita “coisa” em comum. Ora veja-se, cito a autora:
AGIOTAS
Tempo de compras e vendas.
Tempo de vendas e compras.
Ai perfil, tempo de lendas.
Ai tempo, perfil de sombras.
As vendas dão suas rendas.
As rendas dão suas compras.
E o que se compra com lendas
Vende-se em somas redondas.
Por mim, existe uma profunda relação entre o que Natércia Freire deixou escrito na sua poesia e nas múltiplas “lendas” que agora vou vendo transformadas em “coisas” da realidade, ficando até com a impressão que existe semelhança entra a nostalgia que sinto existir na poetisa da autora, e aquela que vejo retratada em muitas das atitudes dos que atualmente falam sobre a corrupção.
Pessimismo meu, penso que não. Porquê? Porque sempre ouvi dizer que atrás dos tempos, tempos vêm, e a esperança é que os próximos tragam aos seres humanos formas de estar e ser diferentes daquelas que, por vezes, parecem marcar apenas e só a atualidade
Luís Barbosa*
*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)