SALPICOS DE CULTURA...
“Sentir a solidão, mas ter esperança no futuro”
Recebo com frequência algumas mensagens de pessoas com quem, antes da desconfortável pandemia, mantinha contactos regulares. Retenho que muitas vezes, após as primeiras manifestações de agrado, em que um “como vai passando”, serve para abrir o tempo de reatar da relação, não raro começo a sentir que o meu interlocutor expressa um certo sentimento de tristeza. Alguns destes meus companheiros são pessoas institucionalizadas, ou seja, vivem nos chamados lares.
As primeiras perguntas e mais correntes, tornam-se inevitáveis. “Então como vão as coisas com o meu amigo? A saúde como está? E a família? Tem tido notícias? As respostas sendo tradicionais, deixam-me quase sempre a pensar. É que recebendo cada vez menos expressões carregadas de alegria e satisfação, retenho o facto de ser mais corrente a transmissão de sentimentos que transportam alguma tristeza. Deixo aqui as frases que mais me saltam à mente: “bem, comigo, cá vou andando, a saúde é a possível, claro que com a minha idade vai-se como se pode, um dia de cada vez. Bem, da família vou sabendo coisas. Sabe, os meus filhos vêm-me ver quando podem, têm o seu trabalho, e dos netos vou tendo notícias pelo telefone, ligam-me às vezes”.
Tenho conversado com colegas sobre este tipo de espelho social que as resposta anteriores traduzem, e retenho que se vai sentindo que expressando as mesmas um certo sentimento de abandono, é também real que muitas pessoas começam até a ter as mesmas como “normalidade”, ou seja, tudo se passa como se na sociedade a “anormalidade” passe a ser “normal”.
Noreena Hertz escreve sobre o assunto, e na sua obra “O Século Da Solidão – Como Restaurar As Ligações Humanas”, publicada pelo Círculo de Leitores na coleção Temas e Debates, diz, a páginas 20/21, o que passo a citar:
“É certo que a discriminação estrutural e institucional continua a ser um fator relevante. Um estudo realizado no Reino Unido em 2019, em que participaram quase mil pessoas, determinou que ser alvo de discriminação racial, étnica, ou xenófoba no trabalho ou no local de residência aumenta 21% as probabilidades de solidão.]…[Neste momento estamos cada vez menos uns com os outros, pelo menos no que diz respeito às formas tradicionais de convívio. Em grande parte do mundo, é menos provável as pessoas irem à igreja ou à sinagoga, pertencerem à associação de pais ou a um sindicato, comerem ou viverem com outros ou terem um amigo próximo do que há apenas uma década.”
O livro que aqui refiro é uma boa obra. Inquietante por um lado, mas muito realista no que respeita a desenhar a sociedade que se foi e vai sendo construída. Contudo, para além de nos confrontar com uma realidade que amarga, não deixa de transmitir mensagem de esperança. Uma delas é expressa, em jeito de final de obra na página 301, volto a citar a autora: “Este Século da Solidão presenteia-nos com desafios singulares – económicos, políticos, sociais e tecnológicos. Estamos num tempo em que grandes faixas da população se sentem sozinhas, apesar de nunca terem sido tão fáceis as ligações: um tempo em que nos identificamos de modo crescente com base na diferença, mas em que que estamos mais cientes do que nunca de como as nossas vidas estão entrelaçadas com as de outros em todo o mundo; um tempo em que as nossas comunidades locais necessitam desesperadamente de reforço e em que é tantas vezes ainda necessária a construção de pontes que unam comunidades diferentes.”
Claro que a realidade aqui desenhada confrange. Contudo, ao caminhar para o final da sua obra, a autora deixa ainda dito que o tempo que vamos vivendo é um momento de grandes desafios e contradições, mas também de forte esperança no futuro. Fico satisfeito por transmitir esta convicção da autora, até porque a mesma coincide totalmente com o meu sentir.
Despeço-me com amizade,
Luís Barbosa*
*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)