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REPORTAGEM: EPDRA - 30 anos depois o regresso ao passado

4/06/2020 às 00:00

O diretor da EPDRA, João Quinas, aceitou o desafio do JA de receber, e fazer uma visita guiada, pela Herdade da Murteira, a Vasco Catroga, um ex-aluno. Em ano de celebração dos 30 anos da escola, sem comemorações devido à pandemia, o Jornal de Abrantes propõe uma visita à EPDRA. Uma visita guiada às memórias do passado sobre os olhares do presente.

 

30 anos de história e de grandes mudanças

Às 09:30, em ponto, Vasco Catroga chega ao local de encontro. Os portões, fechados, da Herdade da Murteira, em Mouriscas. Para lá dos portões verdes funciona, desde há 30 anos, a Escola Profissional de Desenvolvimento Rural de Abrantes (EPDRA) que começou a sua história em 1990 como EPAA – Escola Profissional de Agricultura de Abrantes. A primeira escola profissional de agricultura pública.

Vasco é natural de S. Miguel do Rio Torto, no concelho de Abrantes. Em 1990/1991 ingressou, durante três anos, num curso profissional, no segundo ano de vida de uma nova escola, de uma nova realidade de ensino, por estas bandas. Fez parte de um grupo de 24 alunos da turma B3, do então curso técnico de Gestão Florestal.

"Há 30 anos não havia aqui nada. Eram umas árvores de fruto e mato, mais nada”, diz o ex-aluno da EPAA enquanto esfrega as mãos pela cabeça, como que a ajeitar as gavetas das memórias guardadas da juventude. “Nós ficávamos no centro das Mouriscas (onde parava a camioneta) e vínhamos a pé para aqui. Não sei quantos quilómetros são. Sei é que vínhamos aqui só para trabalhar, porque as aulas eram no centro escolar (antigo colégio Infante Sagres)”. À medida que dá uns passos, curtos, estrada desgastada pelos anos, já dentro da Herdade, diz que o alcatrão ainda é o mesmo (risos) e depois relata com orgulho: “Nós das turmas A e B, as primeiras, é que fizemos a escola. Para além de alunos, éramos pedreiros. Abríamos buracos. Cortávamos árvores. O auditório que existe lá em cima (zona do casario da Herdade) formos nós (turma B3) que cavámos o declive para fazer o desnível. De picareta e pá”.

Vasco Catroga olha à sua volta. Tem as cercas. Os edifícios escolares. Ao longe deixam-se ver os cavalos no prado, debaixo de um sobreiro. “Aqui não havia nada. A única coisa que havia aqui em baixo (zona da direção, pavilhão agroalimentar, adega, ringue, vacaria e boxes dos cavalos) era mato e o lagar velho. Onde é agora o bar”.

Já entrados pela Herdade, chegou o nosso anfitrião, o atual diretor da EPDRA, João Quinas. Sem grandes cumprimentos ou abraços, devido às normas de distanciamento social derivadas da pandemia, ficamos por uns sonoros cumprimentos aliados a uma boa disposição semelhante ao dia, uma terça-feira primaveril, cheia de sol.

João Quinas passa então a conduzir a visita apeada pelos domínios da escola rural. A ausência de alunos e a diminuta atividade agrícola (tudo por causa da pandemia) faz sobressair o chilrear dos pássaros.

Vasco Catroga conta que já estava no 12º ano no liceu (Escola Dr. Manuel Fernandes) em contabilidade, “mas aquilo não me dizia muito (…) e o meu pai trabalhava na CELBI e surgiu a ideia das Mouriscas, da área florestal. Falei com dois ou três amigos meus e… olha, voltámos para trás (10.º ano) e viemos para as Mouriscas”.

Avançamos estrada fora e vamos ao encontro do Pavilhão Agroalimentar. Um dos primeiros projetos apoiados pela TAGUS – Associação para o Desenvolvimento Integrado do Ribatejo Interior. João Quinas conduz-nos ao interior onde podemos encontrar uma mini-exposição sobre a escola e os quadros com as fotografias de todos os alunos da escola. Ali está o quadro com os 20 pioneiros, os primeiros. Vasco diz que já ali esteve, numa prova desportiva (é praticante de trail), e que não encontrou a sua turma. Na voz nota-se algum desencanto. Mas enganou-se. Numa das paredes lá estavam as três turmas B (1990/91), duas de Gestão Agrícola e uma (a primeira) de Gestão Florestal.

Está aqui. A minha é esta. Olha ali onde eu estou. Tão novinho. O número 81”. A alegria de voltar a ver os rostos conhecidos foi notória. Depois olhou para outra turma, onde estava a fotografia da sua mulher, a Fátima, que também naqueles anos estudou nas Mouriscas, mas em Gestão Agrícola. E depois foram cinco minutos a identificar, um a um, os colegas da turma, de 1990/91.

Entre muitas memórias vem à tona uma menos boa. Um incêndio que destruiu a área florestal da escola. “Foi no meu último ano aqui” diz o Vasco ao mesmo tempo que se vai recordando dos pormenores. “Dois dias que não dormimos e que andámos a ajudar a apagar o fogo”. João Quinas recorda que a área de floresta da escola já foi assolada, infelizmente, três vezes pelos fogos florestais. Qual deles o pior.

João Quinas, à medida que vamos dando passos no alcatrão desgastado e sob um sol exageradamente quente para a época do ano, vai explicando o funcionamento da escola. Agora tem as culturas como um laboratório para os alunos poderem ver (e aprender a fazer) de tudo um pouco do que é o mundo rural. Vasco ouve com atenção e ao olhar para os terrenos lembra-se “ali (aponta para uma área que está em repouso, em baldio) eram os camalhões de morangueiros (…) e esta estufa não existia”. João Quinas confirma a afirmação e abre-nos a porta da estufa para mostrar as culturas que ali estão a desenvolver. Alface, feijão-verde, tomate e melancias. E explica que as linhas de alfaces foram arrancadas e oferecidas ao lar de idosos de Mouriscas no dia anterior.

Continuamos, agora para zona dos pomares, depois de passarmos pelas traseiras da pecuária. A zona das boxes dos cavalos, da vacaria e da secção de suinicultura. E também das 150 ovelhas e cabras que vão andando a “limpar” a erva das zonas do pomar. São, diz João Quinas, do melhor para manter terrenos limpos de erva. Mesmo aqueles que ainda parecem ter erva alta vão ter o tratamento dado pelos ovinos e caprinos.

Vasco diz que só havia uma barragem. João Quinas explicou que aproveitam as escorrências das encostas para alimentar mais duas charcas de água. Quanto à barragem, Vasco Catroga já se lembra, e muito bem. “No verão quase sempre secava (…) agora está bem cheia. Lembro-me de um ano que fizemos aqui uma espécie de Camel Trophy… (risos) estava muito na moda e a minha turma era muito criativa” conta à medida que lhe vão chegando as recordações. João Quinas diz que a barragem vai baixar os níveis quando começarem as regas das produções. Depois, aponta ao olival, ali na encosta sobranceira à barragem, e diz que a Câmara Municipal de Abrantes “adquiriu (este ano de 2020) uma parcela de terreno de cinco hectares que nos permite ter toda a área da Herdade contígua. É que havia ali uma interrupção”.

João Quinas explica que aquela que era a área florestal, onde a turma do Vasco Catroga tinha as aulas práticas, continua a sê-lo. Mesmo que não exista, atualmente, a oferta formativa nesta área em concreto. “Temos ali a área do pinho e umas áreas de medronheiro”, diz João Quinas ao mesmo tempo que vai tendo uma conversa mais técnica com o Vasco em torno das espécies que mais resistem aos incêndios. E sim, o medronheiro é dos arbustos mais resistentes ao fogo.

Entramos no monte. Pelas traseiras. “Aqui era a habitação dos caseiros, noutro tempo. Era o casario do monte”, revela João Quinas que passa a conduzir o Vasco por uma área muito mais recente. “Pois, no meu tempo, estas eram as casas de habitação. Não havia nada. Só lá mais em baixo é que era o refeitório e as minhas salas de aula e o anfiteatro de onde tirámos tanta terra à mão”, diz o ex-aluno que ouve, com atenção, a forma como por ali tudo mudou. Agora temos a pousada. Vasco lembra os seus tempos. Não havia alojamentos na escola.

Depois do casario encontramos a eira. Noutros tempos teria o milho e os cereais a secar. Seguramente que ali fizeram muitas desfolhadas e até bailaricos. Agora é uma zona aberta para se poder estar. E nestes tempos da pandemia João Quinas diz que teve a ideia de criar ali (na eira) uma sala de aula ao ar livre. “Temos de ter arte e engenho. Podemos criar aqui um espaço para aulas com distanciamento social e ao ar livre (…) e ali ao lado da adega tenho a ideia de outro espaço destes. É colocar uma pérgula e podemos ter dois espaços de aula ao ar livre.

Vasco Catroga olha para o casario do casal da Murteira (um dos muitos lugares que compõem a freguesia de Mouriscas) e lembra-se que aí também era uma zona florestal. Agora foi transformada numa das vinhas da EPDRA. Sim, a EPDRA, de há uns anos a esta parte, também passou a produzir vinho. Branco e tinto. “E ainda temos umas experiências com cerveja artesanal, interessante para os alunos, por causa da parte química. Mas são apenas experiências. No vinho não. Temos produção e este ano tivemos um tinto incluído na revista Grandes Escolhas” explica o diretor ao mesmo tempo que acrescenta que “não poderíamos ter uma escola de agricultura sem ter um vinho”.

Esta é a área mais recente e a novidade para o Vasco Catroga. No seu tempo a escola não tinha vinha e, muito menos, produção de vinho. A construção da adega foi o investimento mais recente da escola.

Noutra das áreas, as frutícolas, João Quinas explica que o pomar da escola é também um laboratório porque tem todo o tipo de árvores de fruto, em linhas. “Ali, aqueles pessegueiros estão prontos para ser arrancados e substituídos. E acrescenta que ainda se fazem umas compotas e uns licores para aproveitamento da fruta.

Passamos, de seguida, pelo lagar. Melhor, pelos lagares. É que, diz o diretor, trabalha o de linha, moderno, que pode produzir azeite para a comunidade, mas todos os anos o tradicional (das mós cónicas e das prensas com capachos) é posto a trabalhar. “Pelo menos para os alunos perceberem como funcionava, noutros tempos”. E antes de finalizar esta visita passamos pelo bar. “Aqui era um palheiro” lembra-se Vasco Catroga. Mas é logo corrigido por João Quinas: “Era onde estavam as tulhas (depósitos para a azeitona) do lagar”. Entre um café e mais dois dedos de conversa João Quinas conduz-nos a uma espécie de águas furtadas, através de uns degraus de madeira, recentes, onde está um pequeno tesouro da EPDRA. “Temos aqui a nossa biblioteca/museu. Temos aqui livros sobre a ruralidade e agricultura que nos foram oferecidos por várias pessoas.

Quase no final da visita uma passagem pelo ringue desportivo coberto e pela zona da maquinaria. “Ainda têm o Land Rover velhinho?” À pergunta de Vasco Catroga o diretor diz, com sorriso aberto: “Temos e ainda damos umas voltas nele, aqui na quinta. O EF (letras da matrícula) foi o primeiro carro da EPAA. E temos ali uma Renault 4L que também foi das nossas primeiras viaturas”.

E depois, é Vasco Catroga que faz a pergunta: “E daqui para a frente?”

João Quinas responde com a certeza de quem quer continuar a trilhar um caminho no mundo rural, mas assente na dificuldade das entidades responsáveis em não perceberem que o mundo rural vai muito mais além da agricultura, da pecuária ou dos cavalos. Neste momento a escola tem o curso de Gestão Equina quase cheio, mas nos outros ainda há muitas vagas. “Vamos ver (…) esta é uma escola para o país, não apenas para os alunos que acabam o 9.º ano em Abrantes, ou na região. Para já teremos três ou quatro cursos. Vamos ver se conseguimos mais algum, de qualquer forma o mundo rural tem de ser olhado de outras formas. E aqui temos condições para desenvolver muito mais áreas de ensino. Assim a tutela queira”.

Após as despedidas, enquanto voltamos ao portão de entrada da Herdade da Murteira, onde deixámos os carros, Vasco Catroga diz que “esta foi uma visita à memória. Foi um misto de emoções muito grande. Tinha cá estado há pouco tempo, mas não desta forma [até me arrepio todo]. Está tudo muito diferente. Casas aqui? O que é isto? Cercas? Não havia nada. Não tinha nada. Era mato. E fico com pena se não encontrarem alunos para continuar. Há coisas que as palavras não conseguem descrever… [suspiro longo] só vindo cá ver. Mesmo”.

A Herdade da Murteira tal como o Vasco a encontrou hoje não tinha quase nada daquilo que conseguiu conquistar ao longo de 30 anos de vida da EPDRA. Era uma propriedade agrícola propriedade da família do médico e benfeitor mourisquense Dr. Santana Maia. Cerca de dois mil alunos ajudaram a construir aquilo que é hoje um enorme laboratório do mundo agrícola e rural. Mas dos tempos do Vasco e de outros “Vascos” que ajudaram a nascer e fazer crescer a “menina EPPA” fica a mensagem da própria escola “CARPENT TUA POMA NEPOTES” ou seja “Os vindouros colherão os teus frutos”.

 

Conheci a minha mulher ali nos morangos”

Grande parte da minha vida desenrolou-se por causa das Mouriscas” conta Vasco Catroga. Foi ali, algures na Herdade da Murteira, que o jovem Vasco Catroga andava no seu curso técnico florestal. Muitas vezes de fato-macaco, pois a ausência de maquinaria pesada “obrigava” os alunos do “florestal” a agarrar na motosserra para os trabalhos práticos da sua formação. Mas, um dia, o Vasco entrou na vasta zona dos “camalhões” de morangueiros protegidos da terra pelo plástico preto para “roubar” uns moranguitos. E foi ali, algures no meio dos morangos, que viu uma jovem aluna de gestão agrícola. Os olhares entrelaçaram-se e nasceu um namoro que cresceu, terá sido adubado de muitos sentimentos, amadureceu e floresceu num casamento. “Foi aqui que conheci a minha mulher, a Fátima”. A escola está intimamente ligada às vidas destes dois alunos, agora um casal. “Nunca me esquecerei da escola. E a escola está para sempre ligada à minha, às nossas vidas”, diz Vasco Catroga.

E quando entra no pavilhão agroalimentar, onde estão os quadros com todas as turmas da escola, tenta localizar a turma B3, a sua, e logo depois a da Fátima. “Ahhh, está aqui”. Tirou o telemóvel do bolso e toca a tirar uma foto que de imediato enviou à mulher.

Vasco disse logo que a sua noite iria ser de muita conversa em torno da escola. Da que eles conheceram, há 30 anos, mas seguramente desta atual que durante cerca de duas horas e meia teve oportunidade de percorrer. Muitas diferenças, naturalmente, mas muitas recordações e muitos motivos de conversa em família. Afinal a escola deu-lhes a formação e, afinal, a família.

 

A escola em torno do mundo rural

Criada em 1989, começou a lecionar em 1989/1990 com uma turma de Gestão Agrícola com 20 alunos: os pioneiros. Foi a primeira escola profissional de agricultura de natureza pública. EM 22 de maio de 2000 passou a designar-se por Escola Profissional de Desenvolvimento Rural de Abrantes.

A EPDRA já foi uma escola assente em muita produção de frutícolas ou legumes que eram vendidos na Herdade ou até no mercado diário. Mas hoje aponta muito mais a uma espécie de laboratório, ao ar livre, do mundo rural.

Por isso assenta em formação e produção de todo um mundo rural. E poderia ser muito mais alargada às reais necessidades do país, mas para isso era preciso uma grande vontade estratégica e, acima de tudo, política.

Na EPDRA já passaram cerca de dois mil alunos. Todos os dias 23 funcionários tomam conta 68 hectares. E têm ainda 142 ovinos e caprinos. Têm os cavalos, a vacaria e uma área de suinicultura. Só não têm aves.

A herdade tem ainda o pomar (dois hectares), ou a área das árvores de fruto. Há Laranjeiras, diospireiros, pessegueiros, macieiras, pereiras, nespereiras, romãzeiras, ameixoeiras, cerejeiras, nogueiras, figueiras, marmeleiros e meio hectare de amendoeiras.

Tem o olival (três hectares), de onde sai a azeitona para ser moída no lagar (um de linha e outro tradicional), as vinhas (três hectares) para produção dos vinhos (branco e tinto) e ainda uma zona de medronheiros e dez hectares de pinheiro manso e mais três hectares de pinhal com cerca de três anos. Depois acrescenta-se toda uma área mais florestal.

A busca de alunos é um dos grandes trabalhos todos os anos. Captar alunos que pretendam saltar do 9.º ano de escolaridade para um curso profissional. E se o técnico de Gestão Equina tem sempre candidatos, os outros é preciso fazer muita promoção para preencher as vagas. Resta saber se este período de pandemia e de confinamentos poderá dar uma força à EPDRA e fazer com que os jovens, e famílias, olhem para o mundo rural de uma outra forma. Seja como for, a luta é constante, mas a escola continua a ser um laboratório rural. De agricultura. De floresta. De pecuária. De ambiente. Um laboratório de desenvolvimento rural.

 

Reportagem (texto e fotos) de Jerónimo Belo Jorge

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