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“É assustadora a forma como alguns agentes desportivos falam para as crianças e para os árbitros”

28/06/2018 às 00:00

Rui Alexandre Horta Vieira, nasceu há 28 anos em Lisboa, na freguesia de Santa Maria de Belém, tendo-se mudado para o Tramagal aos 5 anos, terra onde a sua família tem raízes. Aos 6 anos iniciou a prática desportiva na modalidade de basquetebol, mas, 2 anos depois, descobriu que o futebol era a sua paixão. Com 17 anos inicia a seu percurso de treinador de futebol, seguindo-se a ida para a Escola Superior de Desporto de Rio Maior onde se licencia em Treino Desportivo e, posteriormente, fez o Mestrado em Treino Desportivo na vertente de Alto Rendimento.

Normalmente chega-se à carreira de treinador depois de um percurso como jogador. Porquê dar este passo tão cedo e como começou essa aventura?

O meu percurso enquanto jogador foi curto. Joguei até aos juniores e ainda com idade de júnior comecei a treinar. Desde muito cedo que quis ser treinador, jogava nas camadas jovens e questionava-me muitas vezes sobre tudo o que se estava a fazer e sentia necessidade de saber mais sobre o jogo e o treino. Quando estava nos juvenis tive um problema de saúde. Fui aconselhado a deixar de jogar futebol, recomendação que não cumpri e mantive-me mais dois anos a jogar, mas chegou a um ponto onde me sentia frágil após os jogos e, depois de um problema com um treinador da formação, chegou o momento de deixar. Comecei num acaso este processo de treinador. Estava a passar por um treino das camadas jovens do Tramagal Sport União e não estava nenhum treinador presente, foi então que me pediram para dar aquele treino e começa aí este percurso enquanto treinador.

Estando ligado à formação de jovens como treinador, como vês o futebol de formação no nosso distrito?

O futebol de formação está longe de ser bom no nosso distrito, mas é um mal que não se constata apenas aqui em Santarém. Ao longo destes anos passei por vários locais e apercebi-me que é um mal generalizado. O primeiro problema do futebol de formação começa na definição de objetivos, que está desenquadrada com as verdadeiras necessidades da formação. O elitismo e a “campionite” invadiram as mentalidades dos dirigentes e treinadores da formação que procuram formar equipas para vencer o campeonato de sub-10 e de sub-15 e não se preocupam em formar um jogador para, na idade sénior, ter uma cultura desportiva adequada e um conhecimento e domínio do jogo que permitam desempenhar as suas funções no jogo com uma performance elevada. Em Abrantes, tenho assistido a alguns jogos e é assustadora a forma como alguns agentes desportivos falam para as crianças e para os árbitros, por exemplo. O segundo maior problema tem a ver com a dificuldade em recrutar pessoas com conhecimento para trabalhar no futebol de formação. Ser treinador exige um desgaste muito grande (se o trabalho for feito corretamente), mas esse desgaste hoje em dia é cobrado a troco de umas sandes e uns talões de gasóleo, o que leva um afastamento das pessoas formadas deste trabalho. Consequentemente, muitos clubes acabam por recrutar pessoas para representar a função de treinadores que, na maioria das vezes, não têm competência para desempenhar as funções de treinador. Os melhores treinadores deveriam estar na base, que é onde são precisos mais conhecimentos para não cometer erros que podem comprometer o crescimento de uma criança/jogador.

Citando Manuel Sérgio: “Quem só teoriza não sabe, quem só pratica repete, o saber nasce da conjugação da teoria e da prática”. Enquanto treinador como interpretas esta frase?

Manuel Sérgio é uma das pessoas que mais tem contribuído para a formação em Portugal do Treinador de Desporto. Este é um tema que há muitos anos ocupa muito tempo de debates desportivos. Será a via académica a melhor forma de ser competente ou apenas quem vem da via empírica tem competências para ser treinador? Nenhuma das vertentes sobrevive sem a outra. A academia precisa do empirismo para construir bases sustentáveis e produzir ideias novas, e a via empírica precisa da academia para se atualizar e não cometer erros graves no processo de treino. Não devemos ser fechados e apenas aceitar uma versão. Eu procurei sempre aprender o máximo possível com os dois lados. Absorver o máximo da via académica e absorver o máximo das pessoas com quem me cruzei e que muito me ajudaram a ser o que sou hoje. A junção das duas e a reflexão das duas é, na minha opinião, o melhor caminho para o sucesso.

Estando no futebol sénior e sendo uma questão comum aos treinadores jovens, como defines liderança?

A liderança é um assunto que não é simples e pode ser interpretado de várias formas. Eu tenho uma maneira de liderar o grupo que vem de mim, é natural, sempre fui assim fora do futebol. É um transporte da minha personalidade para o processo de treino. Sou exigente comigo próprio e exijo muito dos jogadores. O respeito entre todos os elementos é o mais importante. É importante que todos se respeitem e deem o melhor de si e que respeitem todas as pessoas, desde o roupeiro até ao senhor que prepara os nossos petiscos. Um dos aspetos que também considero relevantes para uma boa liderança é a flexibilidade da mesma, cada momento exige uma reação diferente, assim como cada jogador necessita de uma resposta diferente. Existem jogadores com quem podemos ir jantar e ter uma boa conversa sobre futebol e sobre si, mas existem outros que um treinador tem de saber que o resultado desse jantar não será positivo. Mas considero que sem conhecimento não há liderança, se os jogadores não reconhecerem competências no treinador não reconhecem a liderança do seu treinador.

"Defesa coesa e ataque rápido ou pressão alta “, como defines o trabalho do treinador?

O trabalho do treinador é muito mais do que definir se a equipa joga com um bloco alto ou baixa o bloco e procura jogar em ataque rápido em busca do momento exato para apanhar a defesa contrária desorganizada. Mas atendendo à pergunta e neste campo, o treinador deve decidir e definir o que quer em todos os momentos de jogo, seja com bola ou sem a posse da mesma. É necessário o treinador ter uma ideia de jogo, uma filosofia que caracterize a sua equipa, mas é preciso conhecer os jogadores que tem ao seu dispor e adaptar essa ideia consoante as capacidades dos seus jogadores. A identidade não significa que não possa fazer alterações ao seu modelo de jogo em alguns jogos. Deve fazê-lo em função das capacidades do adversário e isso não é perder a ideia de jogo, é ter a capacidade de adaptação e ser um estratega de modo a que consiga se superiorizar ao seu adversário sem esquecer de onde vem e para onde quer ir.

No Tramagal tiveste dois momentos diferentes, uma primeira fase muito boa e uma segunda menos conseguida. Como foi lidar com estes dois momentos?

O mais importante é ter os pés bem assentes, independentemente do momento que se atravessa, porque o futebol é isso mesmo, é o momento, e, temos de saber lidar e interpretar os diferentes momentos. O importante é em todos os momentos dar o máximo de nós próprios, dar sempre tudo e por tudo em tudo o que fazemos e, independentemente dos resultados, estaremos de consciência tranquila, pois o que depende de nós é apenas isso, dar o nosso melhor em todos os momentos. O futebol ensina-nos que não devemos ficar demasiado felizes nos momentos bons, mas também não devemos ficar muito em baixo nos momentos difíceis, porque no futebol tudo é passageiro e o que hoje é verdade, amanhã é mentira.

O que falhou para que o objetivo da subida do Tramagal não fosse atingido?

O objetivo nunca foi a subida. O objetivo desde o início do ano, que foi alcançar o quinto lugar, foi definido pela direção do clube. No momento em que chegámos à segunda fase, é normal que tenhamos o sonho de subir e não vale a pena ir à fase de apuramento de campeão se não for para ficar nos primeiros lugares. Antes de iniciarmos esta fase, eu apontei alguns aspetos de melhoria que seriam necessários para disputar esta fase da melhor forma e, apesar do aviso, estes não passaram de pedidos. O não cumprimento desses pedidos condicionou a equipa e o trabalho da mesma. Esta fase ficou marcada por acontecimentos estranhos, tivemos muitas expulsões, sete lesões e isso condicionou a prestação da equipa, mas mesmo assim acabo esta fase com o sentimento de dever cumprido e orgulho no trabalho feito, pois mesmo com todos os constrangimentos que tivemos, fomos uma equipa séria e praticámos o nosso futebol em todos os campos do distrito. No início do ano, se o Tramagal Sport União ficasse em quinto lugar, todas as pessoas achariam que a época tinha sido boa, mas o trabalho que desenvolvemos elevou a expectativas e hoje existem pessoas tristes por não termos subido de divisão e isso mostra claramente o que aconteceu durante esta época.

Quais são os objetivos para o futuro?

Nunca escondi que quero ser treinador profissional. Sei que é muito complicado e que nem todos os que querem chegam lá, mas darei sempre o meu melhor, seja qual for o contexto onde estiver a trabalhar, tentando um dia chegar ao leque dos melhores. Em setembro de 2018 iniciar-se-á um novo projeto de formação da minha autoria, vou abrir uma escola de futebol no Tramagal e este é um projeto que quero ver crescer nos próximos anos.

Na tua curta carreira, quais foram os momentos que te marcaram de forma positiva e negativa?

É difícil escolher um momento positivo e um negativo. Passei momentos muito bons em todos os clubes por onde passei. O momento mais negativo deste percurso é claramente o despedimento do CD Torres Novas e a forma como aconteceu, mas apesar de tudo considero que tenha sido um dos principais catalisadores do meu crescimento e desenvolvimento enquanto treinador e também como pessoa. Escolhendo dois momentos positivos mais recentes, escolho o jogo frente ao ACD Aldeiense esta época em casa, onde fizemos uma ótima exibição, vencemos e garantimos a ida à fase de apuramento de campeão e, enquanto treinador do CA Riachense no Campeonato Nacional de Seniores, a minha primeira vitória enquanto treinador sénior frente ao CA Ouriense na altura por 2 - 1. Durante os anos de trabalho ligado à formação, não esqueço vários momentos felizes que passei nos vários clubes que representei.

Qual o teu lema de vida?

Acho que não tenho um lema de vida, mas tenho alguns princípios que levo sempre comigo e que tento transmitir a todos os que me acompanham. Compromisso, seriedade, respeito, lealdade e felicidade, são palavras que definem a minha vida e o meu trabalho. A felicidade tem de estar em todos os momentos, pois uma pessoa feliz pode dar muito mais ao mundo que a rodeia. Ser feliz e fazer alguém feliz tem de ser um objetivo diário, nunca esquecendo que a felicidade está nas mais pequenas coisas que nos rodeiam.

Carlos Serrano

Fotos Desporto em Abrantes

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