Uma caminhada de 15 km's, que poderia ser um passeio de verão, colocou uma centena de pessoas a percorrer a cinza e o pó daquela que vai ser a rota: PR – Cardigos Norte. A caminhada permitiu, a uns, conhecer as terras que viram nas reportagens da televisão e, a outros, recordar os momentos de tensão da tragédia de 20 a 22 de julho.
A manhã estava fresca. Nem parecia um 15 de agosto. Às 07:00 o trânsito era reduzido para não dizer nulo, pois via-se aqui e ali um automóvel.
Antes da freguesia de Amêndoa, o sol nascente foi envolvido por uma neblina que transformou um dia de verão num, aparente, dia de inverno. Não fosse o calção ou a manga curta e pareceria mesmo inverno.
Chegada à Praia Fluvial de Cardigos pelas 08:00. O silêncio reinava. Apenas se ouvia o vapor da máquina do café que estava a ser ligada para a manhã. Ouvia-se uma ou duas conversas dos funcionários da piscina.
A água estava vazia. Andava o funcionário com a rede a retirar folhas de árvore e outros pequenos lixos que para ali voaram na noite.
Entre um café e um copo de água pode observar-se a paisagem. Um resto de verde no meio do castanho e cinzento do incêndio de 20/23 de julho. As encostas da Praia Fluvial de Cardigos estão vazias. Mas começa a despertar a vida quotidiana do verão. Os campistas começam a sair das tendas.
Mas antes da entrada na zona da piscina ou da esplanada começa a juntar-se um grupo de mulheres e homens, e duas ou três crianças, que vêm com destino diferente.
Caminhantes ou praticantes de geocaching juntavam-se em frente a um lençol branco com a inscrição “Filhos do fogo” e onde quem queria deixava a sua assinatura.
Leonel Mourato, o impulsionador desta caminhada meio informal e que saltou das redes sociais para o terreno, vai dando algumas explicações, antes do briefing sobre o percurso.
À hora certa, 08:30, dirige-se aos presentes distribuindo uma pulseira que haveria de dar acesso ao almoço nas instalações do clube “Os Galitos”, de Cardigos.
Explica que o percurso de cerca de 13 km's (acabou por ser um pouco mais longo) será, mais ou menos, o da rota de Cardigos Norte. Um percurso desenhado há três meses por zonas verdes, com uma passagem pela pré-história e por três povoações. Neste dia 15 de agosto foi diferente. Foi um percurso por três aldeias e por cinza e mais cinza. Verde só aqui ou ali, ou então à distância em pequenas manchas que pontuam uma paisagem predominantemente moldada pelo fogo e, por isso, castanha.
Por isso mesmo, Leonel Mourato, justificou a realização da caminhada ou passeio pedestre com o lançamento de algumas caches para o jogo do geocaching. É uma mensagem que quer transmitir àquelas gentes. O fogo não abalou a ideia de criar as rotas. Não assustou, antes pelo contrário, reforçou a ideia de se fazer alguma coisa em prol das terras desertificadas e, agora, queimadas.
Às 09:00, partida dos caminhantes. À saída da Praia Fluvial, que começava a ter os primeiros veraneantes, o impacto do queimado foi imediato. Só não foi mais marcante porque já tínhamos feito o percurso de carro por quilómetros de zonas ardidas.
Metro a metro, vamos entrando nos trilhos queimados. Ainda se consegue sentir o cheiro intenso a cinza. Sente-se o pó queimado no ar à medida que os passos dos caminhantes o fazem levantar. Só se vê preto, cinzento e castanho. Zonas mais peladas e outras ainda com os pinheiros e eucaliptos com rama queimada. Aqui e ali descobre-se uma qualquer estrutura que terá sido “destapada” das balsas e matos pelas chamas. Percebe-se onde, nos invernos, passam as linhas de água que, por agora, não passam de sulcos nas encostas.
Entre as conversas iniciais dos “Filhos do fogo” ouvimos de tudo. As imagens que uns viram na televisão e as recordações de outros, do terreno, ou dos relatos dos familiares. Mas fala-se do antigamente. Da agricultura. Da vida no campo. Das culturas. Nos animais. Ou até dos frangos das festas de verão que proliferam por estes fins de semana.
Em Chão Pião temos o primeiro impacto real do que foi aquele fogo descontrolado e gigante. Não há casas ardidas, mas as hortas, ou grande parte delas, foram-se. “Até a terra ardeu”, diz uma caminhante enquanto observa os quintais queimados.
Passam por uma fonte antiga, seca, que dizem ser uma fonte romana. Local para umas fotos e mais umas recordações.
Depois a passagem pelo centro de Cardigos e rumo, por trilhos de floresta queimada, até à Roda. Ali, onde o fogo passou sem bombeiros. Ali onde foi registada a foto de capa do “Jornal de Abrantes” de agosto. Ali onde parei um minuto para reviver aquele momento de 22 de agosto. Onde no terreno vazio consegui rebobinar o filme e recordei o pânico daquele dia.
O reforço alimentar foi na associação da Roda com um terço do percurso feito. Depois foi voltar à cinza. Encosta a encosta mais do mesmo. Entramos no circuito Lithos em busca da Anta da Laginha onde a arqueóloga Sara Cura faz o enquadramento histórico destas câmaras funerárias megalíticas.
O percurso seguiu em direção à Barragem do Vergancinho e depois o regresso, por volta as 12:45, à Praia Fluvial de Cardigos.
Calor intenso e uma Praia completamente cheia. Contraste com o início da manhã.
Depois foi rumar a Cardigos onde os caminhantes integraram o almoço convívio do clube “Os Galitos”. Trata-se de um almoço habitual a 15 de agosto oferecido às gentes da aldeia que vivem fora da região ou do país.
As rotas e o Geoparque
Leonel Mourato, o impulsionador deste passeio pedestre informal, confirmou que está em marcha aquilo que será, no futuro, um Geoparque. Neste momento começam a ganhar forma as primeiras rotas, quatro de um total de 16. Em setembro será formalizado um protocolo entre os 40 cidadãos que estão a “montar” estas rotas e um conjunto de instituições que darão corpo ao caderno de funções de cada uma delas. Também já começaram as reuniões com empresas informáticas que podem vir a “construir” o portal destinado a mostrar as rotas.
Depois, também já começaram as visitas às rotas com especialistas para criar o painel de informações geológicas, arqueológicas, culturais e etnográficas de cada uma delas. É que o objetivo do Geoparque não passa por ter apenas umas rotas para percursos pedestres, trata-se de ter um parque com muita informação e cultura. Aliás, Leonel Mourato, fala já de uma espécie de passaporte que permita aos “frequentadores” destas rotas poderem “carimbá-los” cada vez que fizeram uma das etapas.
“Isto é um elefante que começou a caminhar numa sala de porcelana e que ainda não partiu nada. Haverá um momento que a Câmara Municipal, oposições, associações, que o concelho terá de dizer se querem ou não avançar. E depois há todo um processo legal e burocrático. Temos de ter ligação a uma universidade, e esta à UNESCO. Temos o Museu do Sagrado do Vale do Tejo que tem essas parcerias e que constitui uma mais-valia”, explicou Leonel Mourato.
Esta caminhada foi uma das muitas que vão começar a surgir em Mação. Há três, de um total de 16, que já foram aprovadas pela autarquia. PR (Pequena Rota) 9 – Rota do Brejo e dos Bandos, com uma distância de 10,6 km, o PR13 – Rota do Poço das Talhas, em Queixoperra, com 10,7 km e o PR14 – Rota da Ortiga 2, com um percurso de 14,8 km.
O Geoparque de Mação é um sonho. Que, para já, mantém a chama bem acesa.
Texto e fotos: Jerónimo Belo Jorge
A paisagem tingida do castanho e negro das cinzas
A chegada à Praia Fluvial de Cardigos foi bem cedo, muito antes do espaço de lazer ganhar a sua "vida" normal"
O "lençol" recolheu as assinaturas de quem quis deixar o seu "carimbo" na caminhada
As explicações da caminhada e das Rotas de Mação pela voz do principal dinamizador, Leonel Mourato
A primeira "cache" tinha sido colocada perto da praia fluvial
Objetos que se encontram nos locais onde antes havia mato cerrado
Os trilhos, com temperaturas altas, exigiram esforço dos caminhantes
Em Chão Pião encontramos uma fonte que os locais asseguram ser do tempo dos romanos
Os trilhos tinham o verde como pano de fundo, agora mostram uma terra "moribunda"
Em Cardigos, as sombras das casas e a distribuição de águas animaram os caminhantes
A Associação da Roda presenteou os participantes com um pequeno almoço cheio de hidratos e vitaminas
As marcas dos incêndios de julho deste ano vão deixar marcas durante muitos anos
Na anta da Laginha uma paragem para aumentar os níveis de cultura e da pré-história
As marcas de um fogo descontrolado continuam nas muitas encostas da freguesia de Cardigos
A barragem do Vergancinho foi um dos pontos de abastecimento dos meios que combateram os fogos de julho de 2019