Sábado, 19 de outubro. O relógio marca 19:20, o chão molhado, as nuvens escuras indiciam as chuvadas outonais do dia. Em Queixoperra, pequena aldeia do concelho de Mação, a associação da terra ganha uma vida muito mais agitada. O bar está cheio. No snooker agita-se a boa disposição e olha-se para o relógio. Ainda falta tempo, algum, para as 20 horas. Do outro lado uma mesa na rua, ao fresco da noite, espera dezenas, centenas, de pessoas que se inscreveram para o Festival da Chanfana da aldeia.
Serão 350 inscritos. E não serão mais porque a logística não permite. O salão está cheio, com mesas corridas. Até o palco tem mesas. E do lado de fora do salão, há um outro espaço com mesas. A esta hora, o presidente do Centro Cultural e Recreativo de Queixoperra, Flávio Santos, olha à volta e tenta perceber se está tudo a postos para, antes das 20:00, poderem abrir as portas.
Este Festival ganhou forma, depois dos jantares de chanfana das festas de verão, ali no terceiro fim-de-semana de julho. Sempre foi a grande tradição da aldeia oferecer um jantar de cabra-velha, ou ovelha-velha, aos festeiros e respetivas famílias. Essa tradição ganhou fama e começou a fazer aparecer na Queixoperra “muitos vizinhos e amigos” a quem “nós não fechámos a porta”, explicou o presidente da coletividade. Este dia, a segunda-feira da festa, começou a ter tanta fama que “decidimos criar, em 2014, o Festival da Chanfana. Um evento dedicado a este prato, bem confecionado na aldeia, e que, em outubro, permite abrir inscrições a quem quiser provar o pitéu. E ganhou tanta expressão que as inscrições fecham pouco tempo depois da abertura.
Flávio Santos revela que não pensam em aumentar a capacidade, porque a logística já é pesada, com 350 pessoas. Mas adianta que, se pudessem ter mais capacidade não faltariam pessoas interessadas em vir jantar á Queixoperra. “A aldeia tem menos de 200 pessoas e neste dia nós chamamos cá 350. Temos pessoas de Mouriscas, Abrantes, Sardoal, Torres Novas, Lisboa.”
Flávio Santos confirmou que endereçou convite ao Presidente da República para vir provar a chanfana. E, apesar de saberem que será uma visita difícil, mantêm essa esperança, de que Marcelo Rebelo de Sousa possa visitar Queixoperra e degustar o prato, que é a iguaria da terra. “Este ano ainda pensámos que pudéssemos ter cá o Presidente, pelos afetos, pela forma de ser. Sabemos que não será possível, mas nunca se sabe. Podemos não o esperar e ele aparecer de repente.”
Nove ovelhas para a chanfana e cinco quilos de arroz doce
Se as portas do salão só abrem às 20:00, as da cozinha abriram muito mais cedo. Desde a hora de almoço que Regina Martins e Lurdes Vicente, cozinheira e vice-presidente, andam de volta dos tachos gigantes, onde foi feito o guisado das ovelhas.
Nove ovelhas que são 150 quilos de carne, trabalhados por elas, da forma como sabem para que a cozedura seja feita daquela forma que só Regina Martins sabe. “A nossa chanfana e boa, as pessoas gostam porque não tem aquele sabor mais intenso do borrego ou da cabra. Há quem venha e coma frango (prato alternativo para quem não gosta do prato principal), e acabe a comer a chanfana, porque provam e gostam”.
Se os tachos com a chanfana estão prontos a ser servido, ainda se ultimam as batas e o arroz branco para acompanhar o frango.
A equipa da cozinha da Associação da Queixoperra foi crescendo durante a tarde porque é preciso fazer a salada, cortar o pão, preparar as entradas. Ali, noutra sala ao lado da cozinha, já estão as centenas de taças com o arroz doce que foi feito durante a tarde. Foram cinco quilos de arroz para confecionar outra iguaria da Queixoperra: “O nosso arroz doce também é famoso. Olhe está ali preparado para servir”, diz a dona Lurdes enquanto lida com uma fritadeira industrial. E o cheiro do arroz doce e da canela ainda estão presentes.
A dona Regina não diz qual é o “truque” que usa para a chanfana que é apreciada por todos os que a provam. Apenas revela que é feita como “reza a tradição e com muitas ervas” como tempero, e como é habitual nas “aldeias” do interior.
Regina e Lurdes têm a noção de que é preciso as pessoas gostarem do “petisco”, que não vêm apenas por comer.
Miranda do Corvo e Vila Nova de Poiares são duas localidades que reivindicam serem a “capital” da chanfana, o que mostra que este é um prato típico de Portugal, sem ter uma região mais definida. Trata-se de um prato concebido com base numa cabra velha, mergulhada em vinho tinto e com muitos temperos. Normalmente acompanha com batata cozida e salada.
Às 20:00 as portas abriram. O silêncio da sala vazia encheu-se com o burburinho das conversas, dos risos e das gargalhadas. Afinal de contas um festival gastronómico é um local onde se come e bebe, mas acima de tudo um local de conversas, convívio e amizade. Ainda houve tempo para poderem apreciar a atuação do grupo de concertinas “Seca Adegas”, de Proença-a-Nova. Ah, e claro que a chanfana e o arroz doce, da sobremesa, foram os reis de uma noite típica de outono. Mas fresca e chuvosa.