“Arthur Fleck é um homem que enfrenta a crueldade e o desprezo da sociedade, juntamente com a indiferença de um sistema que lhe permite passar da vulnerabilidade para a depravação. Durante o dia é um palhaço e à noite luta para se tornar um artista de stand-up comedy… mas descobre que é ele próprio a piada. Sempre diferente de todos em seu redor, o seu riso incontrolável e inapropriado ganha ainda mais força quando tenta contê-lo, expondo-o a situações ridículas e até à violência. Preso numa existência cíclica que oscila entre o precipício da realidade e da loucura, uma má decisão acarreta uma reação em cadeia de eventos crescentes e, por fim, mortais”. Foi assim, com a síntese que faz alusão ao filme “Joker”, estreado em 2019, que se deu o mote para o debate.
Um debate sobre a importância da saúde mental, os seus sinais de alerta e os riscos que existem, bem como a necessidade de desconstruir os estereótipos existentes na sociedade e descobrir formas de reintegrar pessoas com problemas do foro mental na comunidade. Tudo isto esteve em cima da mesa no dia 16 de novembro no Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal, no âmbito da conferência “Saúde Mental – Diagnóstico e Prevenção”.
A iniciativa, da organização do grupo Media On, da Rádio Aurora – A Outra Voz, e em parceria com o Município de Sardoal e com a Associação Internacional de Estudos sobre a Mente e o Pensamento, juntou vários especialistas num debate que contou ainda com testemunhos reais de quem luta diariamente contra o sofrimento e o julgamento da sociedade perante o diagnóstico de “doente mental”.
Nuno Faleiro Silva, psicólogo no Hospital Júlio de Matos e responsável pelo projeto Rádio Aurora - A Outra Voz, foi o primeiro a alertar para uma realidade impactante: “As pessoas quando chegam aos cuidados de saúde mental chegam demasiado tarde”.
Admitindo que “existe uma tendência para individualizar excessivamente a doença mental”, o psicólogo considerou que a principal causa para este adiamento se prende com “a discriminação” de que são alvo as pessoas que sofrem destas patologias. Discriminação essa que representa “uma outra forma de sofrimento” além daquela pela qual já passam por ter um problema de saúde.
“A saúde mental é uma coisa de todos nós”. A este ponto, Nuno Silva realça que “a questão do estigma em Portugal tem tido pouca atenção”, ou seja, a problemática dos estereótipos de que são alvo as pessoas com problemas de saúde mental – de que “são loucas, descontroladas, inválidas, violenta” -, bem como a necessidade de recuperar a sua participação “cívica, social e de palavra”, está não só esquecida e desvalorizada como “todo este imaginário coletivo perante as pessoas com problemas de saúde mental é uma enorme barreira na aproximação aos serviços”.
Uma solução mágica não existe, mas há trabalho que “começa nas famílias” e que vai desde “as autarquias até às escolas, nos cuidados de saúde primários, na comunidade, … todos temos responsabilidade na saúde mental”, defende, alertando para os números: “todos os anos se suicidam 1000 pessoas, onde a cada dia três pessoas se suicidam, e é um problema seríssimo do ponto de vista da saúde pública”.
No outro lado da moeda, o psicólogo reconhece que “há sinais de mudança” mas que os mesmos “só serão válidos quando se refletirem na vida das pessoas” e quando a saúde mental deixar de ser “o parente pobre da saúde”.
E se há local onde as ideias das crianças e jovens são formadas e onde se moldam pensamentos e comportamentos é nas escolas. Margarida Bolas, psicóloga do Agrupamento de Escola de Sardoal, garante que, no que toca à prevenção, “é possível fazer uma identificação atempada”, sendo que no caso dos alunos mais velhos são “eles mesmo que nos vêm bater à porta”.
E ajuda a compreender o desenrolar dos problemas de saúde mental através da identificação de dificuldades que representam fatores de alerta: no caso dos alunos do pré-ciclo, ter dificuldades em brincar ao ‘faz de conta’, em descrever acontecimentos ou em pegar em lápis e plasticina podem ser sinais de alerta; já no primeiro ciclo, a presença de fobias, medos, inquietude, bem como queixas de dores de cabeça ou barriga sem motivo aparente, problemas em dormir e alimentar e até o ter atitudes de bully (pessoa que pratica bullying sobre outras pessoas), são comportamentos a que famílias e comunidade escolar devem estar atentos; já na idade da adolescência, alguns dos sinais prendem-se com a dificuldade na aceitação corporal pessoal, isolamento e preocupações excessivas com o rendimento escolar.
No entanto, a psicóloga esclarece: “Estes sinais de alerta não são necessariamente sinais de alarme”.
(E-D): Filipe Madeira, Joaquina Castelão, Nuno Faleiro Silva, moderador Jerónimo Belo Jorge, Margarida Bolas, Cláudia Mourão e Luísa Delgado
Mas e se lhe disser que você que está a ler isto pode ser parte ou vir a fazer parte da percentagem de população portuguesa que tem uma doença mental?
Segundo o relatório da Health at a Glance 2018, da OCDE, (com estimativas referentes a 2016), Portugal é o quinto país da União Europeia com maior prevalência de problemas de saúde mental. Ansiedade, depressão ou problemas com consumo de álcool e drogas e distúrbios bipolares e esquizofrenia são alguns dos casos.
A representante da Federação Portuguesa das Associações das Famílias de Pessoas com Experiência de Doença Mental – FamiliarMente, Joaquina Castelão, revela que os problemas de saúde mental “afetam no mínimo 25% da população, e em Portugal são mais de dois milhões de pessoas que podem ser afetadas por doenças de foro mental”.
A responsável salienta que “o Google não é a resposta para tudo” e que existe uma “falta de literacia muito grande” cuja “culpa é de todos nós” uma vez que não existem programas no sentido de apoiar as pessoas e famílias que sofrem com problema de saúde mental.
“A família tem dificuldade em chegar aos profissionais de saúde devido à forma como o Serviço Nacional de Saúde está organizado”, explica. “Temos de ir subindo patamares”, constata a responsável, no sentido de explanar que não é um médico de família de clínica geral que fará o diagnóstico de uma pessoa com um problema a nível mental.
A família foi outro dos pontos levantados neste debate, uma vez que a família acaba por sofrer com o sofrimento do familiar e com os custos e carga inerente à existência da doença, num país em que “não dispomos de serviços e número suficiente para apoiar a todos”, explica a responsável da FamiliarMente que vê nesta questão uma das maiores lutas das famílias.
E se já se falou de crianças, jovens e famílias, Luísa Delgado, diretora do serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar do Médio Tejo, veio introduzir outra palavra-chave na discussão: o idoso.
“Particularmente aqui, no Médio Tejo, [o idoso] é uma realidade muito consistente”, referiu, destacando a importância de perceber “até que ponto esta questão está a fazer sofrer o próprio”.
A responsável deixou a mensagem de que importa contrariar a ideia pré-feita de que “quando se tem um rótulo de doença mental [uma pessoa] deixa de ter outras doenças quaisquer”, e deixou claro também que “psiquiatria não é só medicamentos”. A psiquiatria que considera ser uma área em existe uma “dificuldade” que se prende com o facto de “o seu campo de valências ter aumentado imenso”.
Mas se a solução não passa completamente por medicação, o que devemos fazer? E o que devemos não fazer?
Filipe Madeira, psicanalista, reiterou a importância de não dizer a alguém com um problema de saúde mental expressões como ‘Deixar estar, isso não é nada’. “Isso não resolve a situação de dor”, alerta o especialista que considerou o isolamento como o principal fator que aumenta a gravidade da situação, com destaque para o isolamento interno – isto é, no seio da família.
Assim, a base para ajudar alguém com problemas a nível mental é influenciada por três pilares: as relações de família, as relações de amizade e as relações amorosas. Pilares onde importa “a possibilidade de nos projetarmos no futuro”, diz.
Ouvir, dar atenção e olhar são alguns dos chavões que representam um importante papel para a reintegração e adaptação destas pessoas na sociedade. Cláudia Mourão, enfermeira especialista em saúde mental e membro do ACES Médio Tejo, destaca isso mesmo: “temos de aprender a olhar” sem discriminar, e a tomar atitudes que “começa em cada um de nós, quer sejamos ou não especialistas”, de modo a combater aquilo que considera ser “grande”: a falta de vizinhança e a indiferença.
E uma das atitudes a tomar passa por algo tão simples como anti-depressivos naturais. A água, o sol, o partilhar e falar, o amor, carinho e sexo, o riso, o dormir bem, o exercício físico, o respirar, o ter atividades de lazer. Em suma, pequenos mais importantes ‘pormenores’ que nos permitirão, explica a especialista, “mudar um bocadinho cada um de nós e uns aos outros”.
E se as lutas são várias, e há trabalho que tem vindo a ser feito, como “o papel positivo de trabalho na prevenção primária” desenvolvido pelo ACES Médio Tejo, o serviço de Psiquiatria do CHMT, projetos como a Rádio Aurora – A Outra Voz, entre outros, a responsável da Associação FamiliarMente, Joaquina Castelão, falou ainda nesta conferência na importância da aplicação de um plano de atuação para a área da saúde mental. Um plano que, diz a responsável, “existe, está aprovado, [e que a ser posto em prática atuará também na região do Médio Tejo] e não está em vigor por falta de verba”. Joaquina Castelão deixou ainda o apelo ao Estado para que “de uma vez por todas, olhem para a saúde mental como se olha para as outras áreas da saúde”.
“O problema que eu tenho não me define” – O testemunho de quem vive com um problema de saúde mental
Filipa, Jusub e Ruben são três dos locutores do programa da Rádio Aurora - A Outra Voz, que encontraram na rádio uma forma de se reintegrarem na sociedade
E se é importante ouvir quem ajuda a tratar a dor e o sofrimento, importa também ouvir quem mais precisa de ser ouvido: quem sofre na pele com a colocação de rótulos por parte da sociedade e quem tem a força e a capacidade de se superar dia após dia.
É o caso de Ruben Cruz, que carrega consigo síndrome de Asperger – uma perturbação do espetro do autismo que afeta as capacidades de comunicação e relacionamento.
Ruben começou a ser seguido por um psicólogo aos 7 anos. Era vítima de bullying e relata que “o problema era o isolamento”.
“A minha família ficou sem chão e sacrificaram muito do seu tempo em debates e associações para saber o que eu sentia, o que eu era”, conta-nos, recordando o momento em que se descobriu que era portador de uma doença do foro mental.
“As pessoas diziam que eu não chegava a lado nenhum e vejam onde eu estou agora... estou na Rádio Aurora!”. E está mesmo. Aos 21 anos, Ruben conseguiu ultrapassar os obstáculos que a doença lhe impunha e está há 4 meses envolvido no programa de rádio produzido do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, para todo o país, através da alavanca das rádios regionais como a Antena Livre.
E Ruben deixa bem clara uma mensagem para todos nós: “O problema que eu tenho não me define”.
Ao lado de Ruben estava Jusub. Contou-nos o quanto lhe custou “estar dependente da minha família” e o quão difícil “é ver a minha mãe na rua e ouvir 'lá vai a mãe do maluquinho' “, num alerta para a crueldade da sociedade que julga não só quem tem o problema de saúde bem como aqueles que vivem em seu redor.
Daí que, Filipa, outro dos testemunhos presentes na conferência, tenha realçado a urgência de se “falar mais sobre saúde mental e haver um contacto mais direto com as populações” para que “a sociedade não pense que somos ET's”.
Sublinha também que ir ao psiquiatra não pode ser apenas “eles receitarem medicamentos e pronto”, numa chamada de atenção para o mais essencial: falar e ser ouvido.
E foi com esse lema em mente que a conferência “Saúde Mental – Diagnóstico e Prevenção” juntou especialistas e testemunhos, no sentido de mostrar que a prevenção começa em cada um de nós e ajudar o outro também.
Público presente no Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal
Pode voltar a ouvir toda a emissão especial realizada em direto da conferência aqui: https://www.antenalivre.pt/podcast/saude-mental-diagnosti-e-prevencao-conferencia-em-direto-na-antena-livre-e-radio-tagide-ouca-aqui/
Ana Rita Cristóvão