As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte em Portugal: um em cada três portugueses continuará a morrer, direta ou indiretamente, de hipertensão.
Dados do Instituto Nacional de Estatística revelados este ano relativos a 2017 divulgam que as doenças do aparelho circulatório representaram 29,4% da mortalidade no país. Das cerca de 32 mil mortes, mais de 11 mil deveram-se a doenças cerebrovasculares.
A hipertensão arterial é um dos fatores de risco no aparecimento de problemas como AVC's e enfartes do miocárdio e a sua prevalência deve-se 90% aos hábitos de vida, como o consumo excessivo de sal. Os outros 10% de casos podem ser originados por causas orgânicas, como alterações hormonais ou dos vasos sanguíneos, por exemplo.
Ronda os 3 milhões o número de portugueses que sofre desta condição. Todavia, dados da Fundação Portuguesa de Cardiologia mostram que apenas 50% sabe que é hipertenso, sendo que apenas 25% está medicado.
Manuel Carvalho Rodrigues é cardiologista há cerca de 30 anos. Exerceu no antigo Hospital da Força Aérea e foi no mandato 2017-2019 presidente da Sociedade Portuguesa de Hipertensão. Atualmente, é médico no Hospital Pêro da Covilhã e faz serviço de urgências no Hospital de Abrantes.
Defende que a falta de adesão ao tratamento e de transformar a consciência em prática diária impedem um bom controlo da hipertensão e, consequentemente, da saúde do coração.
As doenças do aparelho circulatório, nomeadamente AVC's e enfartes do miocárdio, são cada vez mais comuns. Estes problemas de saúde podem ser causados pela hipertensão?
Nós não temos, a nível de saúde pública em Portugal, maior problema do que a doença cardiocerebrovascular. E [esses problemas de saúde] são maioritariamente, para não dizer quase exclusivamente – porque na Medicina não há coisas exclusivas - provocados pela hipertensão arterial.
Quais são os principais fatores de risco da hipertensão?
O principal fator de risco da hipertensão é o consumo de sal. Eu diria que o sal não é só o maior obstáculo, é o único obstáculo. De tudo aquilo que são os nossos hábitos de vida, aquele que influencia decisivamente o estabelecimento e a aparição da hipertensão arterial é o sal. Isto é onde vai acabar maioritariamente um hipertenso não controlado ou não diagnosticado. E não saber que sou hipertenso ou saber e não controlar essa minha hipertensão, em termos práticos, o risco é igual. (…) E o nosso grande problema é fazer sentir à população em geral que a hipertensão arterial não dói, não se sente. E como tal, nós só temos uma maneira de saber se somos ou não somos hipertensos, que é medir.
E este é um problema que não escolhe idades?
Esse é um mito que penso que cada vez mais está desvanecido mas que durante muitos anos se associou a hipertensão arterial ao idoso. Não é verdade. Até pelas mudanças de estilo de vida que os tempos nos vêm trazendo, cada vez mais temos que pensar que a hipertensão arterial é algo que nos pode acompanhar ao longo da vida e que pode aparecer a qualquer altura da nossa vida.
Uma das justificações mais comuns dadas pelas pessoas é a de que se retirarem o sal as refeições ficam sem sabor...
As pessoas têm que ter consciência. Nós quando nascemos não temos o sabor do sal, não conhecemos. E se ao longo da vida nunca ninguém nos desse sal, nós não sabíamos o que era ser comida salgada ou não, para nós não existia aquele gosto. Acima de tudo, foi um hábito que foi instalado desde muito cedo que nos fez com que agora quando somos mais velhos e já temos os hábitos enraizados, tenhamos esse tipo de conversa. Eu costumo dizer com alguma graça, mas também com muita realidade, que os grandes culpados de nós conhecermos o sal são as nossas avós. Porque quando nós começamos a comer com 3/4 meses, o que é que acontece a maior parte das vezes: a avó vai provar a sopa do bebé e lá vai pôr uma pedrinha de sal. Estão a adaptar a sopa do bebé ao seu gosto, mas a partir daí está, de alguma maneira, a marcar o gosto do neto.
O sal é uma questão de hábito?
O sal é uma questão de hábito. Se nós não o conhecermos, não tivermos hábito, nós não teríamos essa ideia de que 'agora custa-me a comer sem sal'. Não, não custa. Para além de que as ervas aromáticas são uma excelente alternativa ao sal porque conseguem, de certa maneira, dar aroma à nossa comida, conseguem fazer com que nós tenhamos a sensação de uma comida agradável e gostosa e ela não tem sal.
A seu ver, a população está devidamente sensibilizada para o problema que é a hipertensão?
Está sensibilizada. Se nós hoje formos junto da população perguntar se têm ideia se o sal faz mal ou não, acho que 90% das pessoas diz que sim, que sabe. Se, depois desta consciência, a toma como hábito de vida é outra conversa: não toma. E por isso, não basta ter consciência, é preciso adaptar a consciência à realidade. Se perguntar a um doente se tem a noção de que, se lhe faltando os medicamentos, ele não pode melhorar, ele diz-lhe que sim. Mas a verdade é que ele não os toma. Ou seja, não é por falta de informação e de consciência que estamos mal, é por falta de transformar esta consciência e informação em realidade, em prática diária.
Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Hipertensão. Que trabalho desenvolveu durante o seu mandato?
É evidente que nós quando recebemos uma Sociedade, a primeira coisa para que devemos olhar é para aquilo que já foi feito. Por isso, foi um bocadinho buscar a memória da Sociedade, perceber aquilo que já tinha sido feito, e bem, nomeadamente a grande luta contra o sal, o se ter conseguido criar a aprovação de uma lei pelo teor máximo de sal no pão, naturalmente também por toda a identificação dos fatores de risco associados à hipertensão e que deveriam ser primordiais. E a partir daqui ver o que é que nós podemos acrescentar mais. Pareceu-me que uma das coisas que poderia e deveria acrescentar mais, e foi por isso a minha bandeira de mandato, era a adesão ao tratamento.
Nós já fizemos muito em conseguir reduzir a incidência do AVC em Portugal, mas continuamos a ter as doenças cardiovasculares, e nomeadamente por doença cerebrovascular, como principal causa de morte em Portugal. Na minha perspetiva era, e é, e ainda será nos próximos tempos, essencial fazer com que o doente seja o principal responsável por assumir se se quer tratar ou não, e se quer-se tratar, tem de cumprir aquilo que é o seu tratamento. E eu acho que é esta muita falta de adesão ao tratamento, ou seja, muita medicação que não é comprada, que não é tomada, e cuja prescrição é alterada, a razão major e ainda muito maioritária para continuarmos a ter números tão preocupantes na causa de morte por doença cardiocerebrovascular.
A capacidade para dar uma resposta eficaz a nível de cardiologia, particularmente na região do Médio Tejo, está bem do coração ou está em insuficiência cardíaca?
Nunca se está bem. Por isso, eu digo que há alguns aspetos que devem ser melhorados, nomeadamente em termos de referências. De referências dos doentes para unidades hospitalares mais diferenciadas. Mas eu diria que hoje a nossa capacidade de podermos ajudar um doente nas fases agudas, que são aquelas que salvam vidas, é razoável e é boa. As nossas constrições são de ordem burocrática, que é, por razões que às vezes ninguém entende, não nos permitem acesso a tratamentos e a hospitais mais diferenciados que podiam dar àquele doente uma resposta de salvar a vida. Por isso eu penso que é mais na legislação e na burocracia que temos problemas do que propriamente na capacidade de podermos arranjar respostas boas às pessoas. Muitas vezes são grãos na engrenagem que não permitem que as coisas possam funcionar melhor. Agora que nós temos já recursos de grande e muito boa qualidade em Portugal, isso temos. Quer na sua generalidade, a população de Abrantes também vai tendo acesso a eles? Sim. Poderia ser melhor? Claro que sim, podia. Não vamos escamotear a realidade.
A nível desta área da saúde, existe nesta região uma prevalência para a existência de problemas associados ao coração?
Nos estudos que são conhecidos, [esta região] não é das zonas do país que tenha incidência de doença cardiovascular acima da média do país. A questão do Médio Tejo em si não é uma zona que esteja fora da média, estará dentro da média nacional.
Estamos na época do Natal, altura de alguns excessos alimentares. Há cuidados especiais a ter para manter o coração de boa saúde?
Eu não acredito que os fundamentalismos resolvam as questões. Não é nos exageros do Natal que o gato vai à filhós, como se costuma dizer. É pelo dia a dia, o não controlar, o não estar atento e não vigiado e nem decisivamente assumir como necessidade para um bom estado de saúde que nós acabamos por ter estas doenças todas. Porque deixar de comer o nosso bacalhau no Natal? Não. Deixar de comer aquilo que são as várias iguarias, umas com mais sal outras com mais açúcar, por causa do Natal? Não. Não é o Natal e não são as nossas tradições que nos devem fazer mudar o nosso estilo de vida. O nosso estilo de vida muda-se no nosso dia a dia, sabendo que há tradições que devemos, e que eu defendo que devam ser continuadas. Acabar-se com o consumo de bacalhau, nomeadamente na época natalícia, porque tem muito sal. Eu não me passa isto pela cabeça nem é essa a mensagem. O que eu digo é: o nosso dia a dia deve ser regrado e de acordo com aquilo que são as normas que estão estabelecidas – muito pouco consumo de sal, e isso é possível no dia a dia.
Ana Rita Cristóvão