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Óbito: Morreu Isabel Cavalheiro (1950-2025)

11/01/2025 às 15:35

Nasceu a 18 de agosto de 1950 e faleceu esta sexta-feira dia 10 de janeiro de 2025, aos 74 anos de idade. 

O corpo vai estar em câmara ardente a partir das 11 horas deste domingo, dia 12, na Igreja da Santa Casa da MIsericórdia de Abrantes, local onde acontecerão as exégias religiosas às 12:30, seguindo depois o cortejo fúnebre para o cemitério do Cabacinho, também em Abrantes.

Isabel Cavalheiro nasceu em Abrantes e aos 17 anos seguiu para Coimbra onde fez a licenciatura em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Regressou a Abrantes onde foi professora na Escola Secundária Dr. Manuel Fernandes. Nesta escola foi presidente do conselho diretivo, entre 1994 e 1997.

Nas eleições autárquicas de 1997 foi a número dois da lista para a Assembleia Municipal, tendo sido eleita juntamente com Rolando Silva.

Em 2001 foi candidata a presidente da Câmara de Abrantes, também pela CDU. Foi eleita para o executivo, tendo desempenhado as funções de vereadora sem pelouros atribuídos. De notar que foi a última vez que a CDU teve um membro eleito para o executivo municipal de Abrantes.

Foi ainda delegada sindical, presidente do Clube de Campismo de Abrantes, para além do envolvimento noutras associações do concelho e da região.

Foi colaboradora da Rádio Antena Livre. No final da década de 80 e inícios de 90 tinha um programa em coautoria com Isilda Jana sobre história local e educação. Também foi cronista na edição das 12 horas da Antena Livre na primeira década deste século.

Em 1992, juntamente com Eduardo Campos, edita o livro “Abrantes 1916 : processo de elevação a cidade”, numa edição da Câmara Municipal de Abrantes.

Em 2024 foi convidada a fazer a intervenção sobre os 50 anos do 25 de Abril, na Assembleia Municipal de Abrantes.

Um texto que aqui reproduzimos na íntegra:

 

(...) É uma honra e um prazer estar hoje aqui a comemorar o 25 de Abril convosco. O meu muito obrigado pelo convite que me foi dirigido.

Não vou fazer uma resenha histórica, apenas um pequeno depoimento de como vivi o 25 de Abril e o que representou para mim.

Falar do 25 de Abril é uma tarefa fácil e ao mesmo tempo difícil, porque são as emoções, os sentimentos de tudo o que se viveu que vêm ao de cima. É glorificar a Liberdade, o que por ela se lutou e o que ainda se tem de lutar.

E como dizia Miguel Torga

Livre não sou, que nem a própria vida

Mo consente.

Mas a minha aguerrida

Teimosia

É quebrar dia a dia

Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.

E vão lá desdizer o sonho do menino

Que se afogou e flutua

Entre nenúfares de serenidade

Depois de ter a lua!

Deixem-me contar-vos um pouco do meu 25 de Abril. Todos nós o vivemos de maneira diferente, cada um à sua maneira.

Nasci em Abrantes, numa família da classe média. Educada pelos meus avós, frequentei um colégio de freiras até ir para a Universidade. Ensino católico, conservador, mas sinceramente não me provocou grandes danos, apenas uma revolta maior na criança rebelde que era. De certa forma estava vacinada contra tudo isso. Tive o contacto com as primeiras letras ao colo do meu avô, no jornal República, o único jornal que entrava na minha casa. Devo ao meu avô o conceito de liberdade e responsabilidade que me foi transmitindo, assim como outros valores pelos quais ainda hoje pauto a minha vida.

Vivi um quarto de século em ditadura e não quero voltar a ter essa vivência. Sei o que é o medo, a angústia, o desespero de não saber o que te espera ao virar da esquina. Tudo na ditadura é péssimo, mas o medo é talvez das piores situações. Ele atrofia-te, não te deixa avançar, inibe-te, é capaz de te transformar num farrapo. O medo era uma constante. Medo de nós e dos outros: medo do vizinho, do colega de carteira, do desconhecido com que nos cruzávamos na rua, da campainha da porta que tocava quando não se esperava visitas. É verdade que o medo faz parte da vida, por vezes até é saudável, porque nos alerta para determinadas situações, mas não é este medo, este é um medo que nos oprime, nos angustia, que nos destrói, que não nos deixa ser humanos. Eu senti esse medo, eu não quero nunca mais voltar a senti-lo, eu não quero que ninguém o sinta.

Muitas outras emoções se viveram. O encanto de se esconder, entre as sebentas, uns panfletos proibidos, o entrar numa livraria e sair de lá com um livro proibido, que o livreiro tirava, com todo o cuidado e atenção, de baixo do balcão ou do fundo de uma estante. Tenho bem presente o dia em que saí da Livraria Almedina, com A Praça da Canção, de Manuel Alegre, bem escondido entre os dossiers da faculdade, olhando para todos os lados, sentindo-me comprometida, sem qualquer razão, ansiosa por chegar a casa para me deleitar com as suas palavras, para alimentar o meu sonho de um mundo melhor. Atenção, a ditadura em que vivíamos também teve o condão de nos despertar.

 Ensinou-nos por exemplo, a ler nas entrelinhas, as notícias que a censura deixava passar. Há textos jornalísticos deliciosos, como por exemplo a descrição de um jogo de futebol entre as grandes equipes, em que conseguias perceber uma crítica ao regime vigente.

 Ensinou-nos o que era a bondade e a necessidade dela, assim como o conceito de solidariedade. Nunca esquecerei a bondade e a solidariedade dos habitantes de Coimbra que, sem nos conhecer, deixavam as suas portas entreabertas para nos podermos esconder, quando a polícia nos perseguia.

Só queríamos construir uma vida melhor, transformar um país pobre e triste em algo grandioso e inundado pelo brilho do sol. Não nos deixavam. Eram amarras por todo o lado.

 Um ensino obsoleto, privados de liberdade (palavra proibida), cercados pela censura, pela PIDE e arrastados para uma guerra que não era nossa, mas a que nos obrigavam. Tanta vida destruída, tantos sonhos desfeitos.

De repente, os nossos jovens são obrigados a trocar uma vida por um camuflado e uma espingarda e partirem para rumos desconhecidos, não sabendo se voltariam. E o medo, sempre o medo, sempre o medo…Ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, não consigo descrever o que senti, a revolta, a dor, a raiva, o medo, o choro, numa manhã nebulosa de Setembro, no cais de Alcântara, a despedir-me de um grande amigo que partia para essa guerra. Ainda hoje, ouço o apito do Vera Cruz a afastar-se lentamente do cais, vejo os olhos embaciados dos familiares e amigos, as lágrimas que escorriam pelos rostos, a raiva que perpassava no ar, as mãos apertadas, a angústia, o desconhecido, o medo…

Não, nunca mais quero viver isto, que me marcou, que abriu feridas que, de vez em quando, ainda doem.

Mas mesmo assim, não me mataram os sonhos. Continuei sempre a lutar pela liberdade, por uma vida melhor.

Nunca me senti discriminada por ser mulher. Mas a mulher tinha um papel secundário nesta sociedade conservadora e machista. Era um ser inferior cuja única função era procriar e ser boa dona de casa. Era um ser inferior, na dependência do pai, dos irmãos, do marido. Não podia, por exemplo, ter uma conta bancária, sair para o estrangeiro sem autorização do marido e as enfermeiras e professoras primárias não podiam casar sem autorização do estado, porque o marido tinha de ter certos requisitos. Recordo que quando comecei a trabalhar tive de assinar um papel em que declarava que não pertencia a nenhuma organização que fosse contra o estado. Aparentemente, parecia que a mulher aceitava passivamente tudo isto, mas não. No silêncio do lar, nos locais de trabalho, nas faculdades, a mulher não se submetia e lutava com as poucas armas que tinha, para acabar com tudo isto. Também lhes devemos a conquista da liberdade.

Fui presa pela PIDE, na crise académica de 69. Não esmoreci, bem pelo contrário, ganhei força, coragem para lutar pelo que sempre defendi, e como diz Manuel Alegre:

Esta chama ateada no meu peito 

por quem morro por quem vivo  

este nome rosa e cardo por quem livre sou cativo.

Sobre esta página escrevo o teu nome: liberdade.

O tempo foi passando e íamos nos alimentando da esperança de que alguma coisa tinha de mudar. O regime estava caduco e dificilmente se manteria mais tempo. A guerra em África arrastava-se, sem qualquer solução à vista. A comunidade internacional isolava-nos, o Conselho de Segurança da ONU condenava-nos, através das suas sucessivas resoluções, mas o governo português não cedia. As poucas notícias da guerra, que a censura deixava passar, pouco nos diziam e o que se sabia era pela imprensa internacional (os poucos que lhe tinham acesso) ou pelas cartas (lendo nas entrelinhas) o que os nossos amigos nos contavam.

Pairava no ar o cansaço, a desilusão. Isto não podia continuar, algo tinha de ser feito. Por vezes chegavam-nos alguns ecos de reuniões clandestinas, que nos davam algum alento, alguma esperança. A Primavera Marcelista rapidamente se revelou um logro. A guerra era para continuar, a censura, agora chamada (Exame Prévio) a PIDE, agora chamada DGS (Direcção Geral de Segurança), a que nós chamávamos Direcção Geral de Saúde, pois continuava a tratar-nos da saúde, sempre solícita, sempre atenta.

A vida continuava com os sobressaltos do costume. Parecia que o tempo tinha parado. Até que a 16 de Março de 74 fomos acordados com a notícia de que o quartel das Caldas da Rainha saíra em direcção a Lisboa. Os sorrisos voltaram aos rostos, mas a duração foi curta. Mais um movimento que tinha abortado. Não podíamos esmorecer, não podíamos perder a esperança.

Sempre gostei mais da noite que do dia. Embora já trabalhasse, na madrugada do dia 25 de Abril, enquanto lia O Portugal e o Futuro, do General Spínola, ouvi na rádio o Grândola Vila Morena e pensei que o locutor estava louco por passar uma das muitas música do Zeca Afonso. Dormi. E quando acordei o rádio transmitia marchas militares. Não dei grande importância ao facto e fui trabalhar. Estava de serviço de vigilância de exames aos militares com um colega meu, homem afecto ao regime que sem me dizer bom dia, me perguntou o que é que eu sabia. Estranhei e mais estranhei quando, passado algum tempo, o Reitor entrou na sala, trocou, em voz baixa, algumas palavras com o senhor e saíram os dois.

O resto do dia foi agitado. Não houve aulas, os jornais não chegaram e passamos o tempo à volta do rádio na sala de professores a tentar perceber o que se passava. Entre as marchas militares, de quando em vez, apareciam uns comunicados do MFA que nos criavam toda a espécie de sensações. Não tínhamos dúvida que era um golpe militar, mas um golpe militar de que lado? Dos afectos ao regime? Dos oposicionistas? Era a dúvida, era o medo. Nessa tarde, por razões que não interessam, estive na porta de armas, do Regimento dos pára-quedistas, em Tancos, onde reinava um silêncio sepucral e uma calma aparente.

A pouco e pouco, as dúvidas iam desaparecendo. O regime caíra

E, como diz Sophia de Mello Breynner, finalmente a esperança renascia, o que se esperava acontecia

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Os dias seguintes foram de euforia com alguma expectativa, ansiosos por saber o que se passava, ávidos de notícias, seguindo atentamente os jornais, a rádio , as emissões da televisão, o aparecimento da Junta de Salvação Nacional, as reportagens do Largo do Carmo, a rendição de Marcelo, o papel calmo e sereno de Salgueiro Maia, os cravos vermelhos no cano das espingardas…

O apogeu deu-se no 1º de Maio. O povo saiu à rua e extravasou toda a sua alegria, todo o desejo de uma vida melhor. O sentimento de liberdade pairou no ar, a sensação de ser livre, de não ter medo, o agradecimento profundo ao MFA, aos Capitães de Abril. Enquanto viver ser-lhes- ei, eternamente grata por me terem proporcionado tudo aquilo por que tinha lutado. Devo-lhes a alegria de viver, a paz, a liberdade. Que palavra bonita, abrangente, liberdade de falar, de expressar, de viver.

Depois as primeiras eleições livres, a Constituição de 1976, a Liberdade, finalmente a Liberdade.

Passaram-se cinquenta anos. Nem tudo foi fácil, por vezes bem difícil. As intentonas, as tentativas de voltar ao antigamente, o PREC, tudo esteve sempre presente. A luta não terminou, bem pelo contrário, como nos mostra hoje a conjuntura nacional e internacional. Não podemos baixar os braços. Temos de estar atentos e continuar a lutar. O 25 de Abril tem de se cumprir e isso, acreditem, depende de nós.

Deixem-me terminar como Ary dos Santos tão bem cantou:

De tudo o que Abril abriu

Ainda pouco se disse

e só nos faltava agora

que este Abril não se cumprisse.

(…)

E se esse poder um dia

o quiser roubar alguém

não fica na burguesia

volta à barriga da mãe!

Volta à barriga da terra

que em boa hora o pariu

agora ninguém mais cerra

as portas que Abril abriu!

 

Viva o 25 de Abril

 

Isabel Cavalheiro, 25 abril 2024

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