Ana (nome fictício) foi vítima de violência doméstica. Manipulada por um companheiro que a fazia sentir-se presa e sofrer em silêncio, foi agredida física e psicologicamente durante três anos. Sentiu vergonha e medo, até ao dia em que ganhou a coragem de acreditar na justiça.
“O último ato de violência foi em setembro de 2019. Não foi fácil esta última situação, fiquei com o nariz partido e fui trabalhar com a cara em mau estado... custou-me um bocado porque acabava por sentir vergonha”.
A respiração de Ana enquanto recorda tais momentos é de um ofegar exausto que transparece a aflição que ainda hoje teima em não a libertar.
Esteve numa relação abusiva durante cinco anos. Mas só há três anos deu conta disso. Envolvida no amor que tinha para dar e na segurança de ter alguém, ao início quase tudo parecia ser cor de rosa e dar-lhe a força de que precisava para sarar a ferida de uma anterior relação falhada.
"Foi o desculpar no sentido de a pessoa estar extremamente alcoolizada, vi como uma consequência"
Mas na vida real existe sempre um “mas”. Neste caso, era o álcool, que começou a ganhar força. E se “até uma certa altura a pessoa conseguia ir-se controlando”, o fim da linha chegava com o extremo da agressividade.
“Não só com as palavras, como depois passou à ação. Agarrou- me pelos cabelos, atirou-me ao chão, ...” e o resto do episódio foi igual a tantos outros. Tantos outros que fizeram perceber a Ana quem tinha ao seu lado e ficar atenta, mas... “não fiz queixa”.
“Fiquei em alerta... mas foi o desculpar no sentido de a pessoa estar extremamente alcoolizada, vi como uma consequência”, explica com a certeza de quem, ao fim ao cabo, só tinha uma certeza: a de que iria acabar por ser sempre ela a pagar a conta.
Os episódios foram tão vastos como as lágrimas que lhe caíam do rosto.
“Vaca, cabra, p***” foram algumas das palavras que teve de ouvir vezes sem conta. Porque além da violência física, a violência verbal e psicológica também magoa.
“Ele é uma pessoa muito manipuladora. Tanto que as situações que aconteceram em questão de violência física foram sempre com álcool envolvido mas em questão de violência verbal já não. O facto de a pessoa também ser confrontada com certas situações que foram acontecendo, tudo isso foi piorando”, explica-nos Ana, que recorda que tais atitudes só aconteciam “quando estávamos sozinhos ou por telefone. Em frente à família não”.
"É vergonha pela situação em si e por não querer falar de algo que dói. (...) Era o querer sair da situação mas, ao mesmo tempo, sentir que estava presa"
O medo, a vergonha e a dor são razões para ter aguentado em silêncio.
“A minha mãe sabia de algumas coisas mas nunca quis expor demasiado a situação, o falar abertamente sobre aquilo que eu sentia era muito difícil. A gente guarda muito”, conta, acabando por assumir que tinha vergonha.
“É aquela coisa, não sei explicar. É vergonha pela situação em si e por não querer falar de algo que dói. Porque é quase como estar a expor a ferida em que tu estás a viver. É como se ficasses de repente despida e há ali constrangimento”.
Feridas que se abriam um pouco mais de cada vez que as colegas de trabalho viam as marcas e lhe perguntavam o que se passara. “Caiu-me uma coisa em cima”, era o que dizia para “disfarçar a coisa”.
Mas... “as pessoas não são parvas, apercebem-se”. Sobretudo na área onde trabalha, a da saúde, onde lida diariamente com profissionais que conseguem diferenciar uma queda de uma agressão.
A situação ainda conseguiu agravar-se mais: Ana entrou em depressão.
“Já não andava bem psicologicamente, a pessoa teve comportamentos inaceitáveis, o lado verbal estava a afetar-me muito. Cheguei ao ponto de não me conhecer. Era o sentir realmente que era manipulada emocionalmente e dar comigo a pensar ‘ eu não sou assim’ ”.
Ana estava perdida de si mesma, ao ponto de “tolerar uma série de coisas que eu nunca toleraria a ninguém. Era o querer sair da situação mas, ao mesmo tempo, sentir que estava presa”.
Uma prisão da qual só tomou consciência quando lhe ‘caiu a ficha’ e percebeu que poderia passar a ser “apenas mais um número” na lista de mulheres mortas em contexto de violência doméstica. Foi num dia ao acaso, depois de mais um dia de trabalho, que chegou a casa e ligou a televisão. Estava a dar um programa de debate sobre o tema.
“Isto está a acontecer comigo”, pensou. “Não se calem”, dizia a apresentadora. E, por alguma razão que nem a própria sabe explicar, aquelas três palavras começaram “a martelar na cabeça e deram-me força”. E Ana não se calou.
“Fiz queixa [à polícia] e mantenho a minha queixa, está a caminho do tribunal. Ele já foi constituído arguido e agora é uma questão de esperar”, conta-nos, com a esperança na voz e a determinação no olhar, assumindo que quer levar a situação “até ao fim”.
"Quanto mais a gente se cala mais perdemos o nosso tempo, perdemos vida (...) Peçam ajuda (...) E se tiverem filhos, principalmente. Os filhos sofrem com o sofrimento das mães e isso é uma marca que fica para a vida toda. Não se calem.”
E o medo? “Tenho e não tenho. Tento não pensar nisso porque, por muito que ache que as pessoas são boas ou que não têm coragem de fazer o que quer que seja, hoje em dia vê-se tanta coisa que uma pessoa acaba sempre por, inconscientemente, pôr em dúvida”, desabafa Ana que admite ainda ter hesitado no momento de agir e diz compreender o facto de haver pessoas que desistem das queixas: “O medo toma conta da pessoa. E quanto mais pensas mais desenvolves o medo e é uma bola de neve que vai crescendo ao ponto de te bloquear. A pessoa começa mesmo a sentir, é complicado”.
Contudo, no seu caso, insistia em aparecer o pensamento de “eu não quero desistir, eu não posso deixar que o medo me impeça de andar para a frente”. E hoje mantém-se firme na decisão que tomou, contando com o apoio “de quem é devido e de pessoas amigas”, tendo ainda ponderado recorrer a instituições de apoio relacionadas com a violência doméstica.
“Não” é a resposta que automaticamente lhe sai quando lhe perguntamos se já sentiu vontade de voltar para o homem que a agrediu. Homem esse que, apesar de ter sido bloqueado por Ana da sua vida das formas que conseguiu, ainda hoje arranja maneira de lhe enviar mensagens.
“Desculpa”, diz uma das mensagens enviadas pelo indivíduo no dia a seguir a ter desfigurado o nariz de Ana. “Sai completamente da minha vida, não quero mais ver-te”, respondeu ela.
Tempo depois, chegou uma nova mensagem, à qual a resposta de Ana foi ignorar.
/ Esta foi uma das diversas agressões físicas de que Ana foi alvo por parte do ex-companheiro. Foi a brutalidade do ato que a levou a dizer “chega” e a denunciar o sofrimento pelo qual passava, fazendo queixa nas autoridades policiais
Com a esperança depositada na justiça portuguesa, numa luta diária contra a sombra do medo e numa tentativa de encontrar o caminho para a felicidade, Ana agarra-se ao amor maior que existe entre mãe e filho e passa a mensagem que também ela recebeu quando sofria em silêncio:
“Que não se deixem dominar pelo medo. Que não deixem arrastar a situação, sobretudo se têm a consciência de que estão numa relação abusiva. O primeiro pensamento que tenham em sentido de fazer alguma coisa, que façam. Falem, divulguem, porque quanto mais a gente se cala mais perdemos o nosso tempo, perdemos vida, deixamos de ser nós e chegamos a uma altura em que deixamos de ter forças. Peçam ajuda, peçam a alguém de confiança que vá convosco fazer queixa. E se tiverem filhos, principalmente. Os filhos sofrem com o sofrimento das mães e isso é uma marca que fica para a vida toda. Se têm amor aos filhos, pensem neles principalmente. Não se calem.”.
REIVA - Uma rede de ajuda
A Rede Especializada de Intervenção na Violência de Abrantes (REIVA) existe no concelho desde 2011.
Coordenada pelo Município, partiu da necessidade de “dar resposta à problemática da violência doméstica, em particular à violência de género”, conforme explica a vereadora do Município responsável pela área da ação social, Celeste Simão.
Este “fórum de trabalho” inclui a Associação Vidas Cruzadas, as autoridades policiais, o Centro de Respostas Integradas do Médio Tejo, o Hospital de Abrantes (CHMT), a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, a Cruz Vermelha, a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, a Escola Superior de Tecnologia de Abrantes, a Santa Casa da Misericórdia, a Segurança Social, o serviço de emprego de Abrantes e a Ordem dos Advogados.
Com reuniões trimestrais, esta rede visa o “encaminhamento, prevenção e tratamento” dos casos de violência. Celeste Simão diz que em “em cada uma destas entidades existem pessoas que têm formação com quem depois todos nós articulamos”.
A porta de entrada é maioritariamente a Câmara de Abrantes, que tem o serviço específico de atendimento à vítima, seguida depois pela PSP e GNR.
“Em cada uma das outras entidades da REIVA, por exemplo, no hospital, no caso de uma vítima que é lá sinalizada, é depois encaminhada para o serviço da Câmara, ou para a PSP ou GNR. É assim que funciona”, explica-nos a responsável.
Atualmente, “são mais as pessoas que nos procuram ”, revela Celeste Simão, dando conta de que há “situações que são detetadas no tribunal, e mais no hospital - pessoas que supostamente deram uma queda”. A responsável diz mesmo que “há muita gente já a procurar o serviço”, facto que justifica com a maior sensibilização existente.
“O número de vítimas aumentou mas isto não quer dizer que haja mais vítimas agora do que nos anos anteriores. Aliás, aparecem-nos pessoas que são vítimas de violência já há alguns anos. São situações reiteradas que se prolongavam e agora é que sentiram coragem porque começaram a ouvir falar, porque sentiram que realmente estão a ser vitimizadas e isso não é normal”, conta-nos a vereadora.
Atualmente, em Abrantes existem “novos processos em acompanhamento” pelo Município, sendo que em 2019 se abriram 14 – 13 mulheres e um homem.
Sendo que “o tabu começa a ser desmistificado”, Celeste Simão explica que as vítimas “não são provenientes só da classe baixa. Isso não é verdade. Isto é um fenómeno que é transversal a todas as classes sociais, e isso tem vindo a acontecer”.
Para estes casos de violência, a Câmara tem mecanismos que podem ser ativados. Apoios de emergência em situações como a “necessidade de retirar a pessoa do ambiente onde está, apoio na renda de casa, uma viagem para o local para onde vai”.
Confessando que “o feedback depois de as pessoas serem acompanhadas é o de que resultou numa diferença nas suas vidas”, Celeste Simão faz um balanço positivo do trabalho da REIVA e reitera que o Município tem a porta aberta para ajudar as vítimas: “não tenham vergonha e que se dirijam ao serviço de atendimento à vítima”.
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Reportagem: Ana Rita Cristóvão