Deixaram para trás uma vida na Venezuela, parte da família e todos os pertences. Mas a vontade de viver e dar futuro a uma bebé de cinco meses levou um casal a deixar aquele país para viajar para Portugal, "aterrando" em casa de familiares em Mouriscas.
No início de dezembro, a Jennifer, o companheiro Gustavo, a mãe Iris e a bebé Samantha percorreram os corredores do aeroporto de Caracas com o medo e o receio de poderem a qualquer momento ser interpelados pelas autoridades venezuelanas e serem impedidos de embarcar no avião que os haveria de fazer chegar a Portugal. Jennifer recorda, com lágrimas nos olhos, esses minutos que só tiveram descanso quando se sentaram, e acima de tudo, quando o avião levantou voo. Mesmo com a documentação toda certa, Jennifer é filha de pai português, por isso, tem dupla nacionalidade. Mas havia sempre o receio de qualquer impedimento por causa da pequena Samantha. “Lá os bebés são 'propriedade' do Estado e isso podia impedir a nossa saída”, conta ao Jornal de Abrantes com a noção de que tiveram “sorte. Sim. Sorte porque não nos revistaram, não fizeram perguntas”. A opção por Portugal foi natural, pela ligação ao pai e aos tios que vivem em Mouriscas.
E foi em Mouriscas que encontraram a tranquilidade que há muito tempo não tinham. “Aqui não é preciso andarmos a correr por gasolina ou por comida”, diz Gustavo que com admiração revelou que ficou impressionado com a calma, pois até as “portas podem ficar abertas”.
E é nesta calma que descomprimiram de dias difíceis da Venezuela em que viviam em sobressalto constante, pois as notícias “que passam cá mostram uma pequena parte da realidade que é bem mais grave do que aquilo que se vê”, começa a contar Jennifer que relembra a corrida constante pelos bens essenciais. Desde a falta de comida, a falta constante de água ou de eletricidade. “Cá pagas a internet, mas tens. Lá é grátis, mas... não tens”, comenta Gustavo para exemplificar a vida que tinham a cerca de 3 horas de Caracas, onde viviam.
A ideia de deixarem o país e toda uma vida começou a ganhar forma quando entrou na vida deles a Samantha. Quando foi para o parto [numa clínica privada, pelo seguro de saúde da empresa em que trabalhava] Jennifer recorda os receios que a falta constante de luz criava. “Todos os equipamentos de saúde estão ligados à eletricidade. E se fosse preciso? Como seria? Não consigo imaginar. Felizmente correu tudo bem e o parto correu bem”, diz a luso-venezuelana com um sorriso.
Quando questionada sobre a opção de vir para Portugal, explicou que foi quase imediato. A irmã foi para o Peru e lá “tratam-na mal como é venezuelana. Mas não teve a oportunidade que eu tive por ter nacionalidade portuguesa”, diz Jennifer com uma lágrima no olho, tal como a sua mãe Íris. Tiveram de “fugir” porque o custo de vida é incomportável. “A inflação mata as pessoas. Num mês uma coisa que custava um dólar agora custa cinco. E as pessoas não compram comida e vão emagrecendo, emagrecendo”, explicam ao mesmo tempo que revelam que compravam “pastas” (massas) e de má qualidade. Gustavo revela que os problemas de estômago que tinha desapareceram quando começou a “comer com mais qualidade”. Esta é, contam, uma realidade do país.
Jennifer explica, novamente com um sorriso no rosto, que ir ao supermercado e ter “escolha de produtos” é uma “riqueza que não temos”. E dá outro exemplo. Fruta. “Só temos a fruta da época. Papaia e laranja. Se quiseres maçã ou uvas não tens dinheiro para as comprar”. E continuam a explicar que peixe não podem comprar por não terem os meios de conservação. Já na carne ou “compras porco ou frango” porque não há dinheiro para poder ter variedade na alimentação.
Íris Martinez, Jennifer da Silva (com a bebé Samantha) e Gustavo Rios. Crédito: Jornal de Abrantes
Jennifer e Gustavo viviam perto de Valência, a oeste de Caracas, depois do grande lago. Ela trabalhava numa grande companhia na área da qualidade alimentar e ele, mais ligado às tecnologias de comunicação, era secretário técnico e treinador numa equipa de futebol. Tinham uma vida estável antes das crises políticas que colocaram a Venezuela num caos constante e sem solução à vista. Não falam de política, embora haja um sentimento de saudade, principalmente porque a família do Gustavo ficou lá. Falam com eles através do WhatsApp. E a saudade aperta, mas a vontade de dar melhores condições à pequena Samantha faz ultrapassar as contrariedades que surgem pela frente. Como chegaram sem nada, sem roupa, rapidamente algumas pessoas ajudaram. A dona da Mil Ideias e a Carla Filipe fizeram uns pedidos, uma espécie de campanha informal que correu alguns circuitos do Facebook, e levou a que em dez dias esta família tivesse as condições para poderem viver e, acima de tudo, enfrentar o frio português a que não estão habituados.
“Dizem que os portugueses são mais frios, mas não é assim. Só temos a agradecer tudo o que nos deram”, diz Jennifer ao mesmo tempo que Gustavo puxa o colete que tem vestido e agradece também o “regalo” que lhe deram. Quando esta família chegou a Lisboa, os tios da Jennifer, que vivem em Mouriscas, foram buscá-los. “Vinham com a roupa que tinham vestido e sem qualquer bagagem”.
Agora que já descansaram e deixaram de viver “em stresse” e a “correr todo o tipo de riscos”, o casal que vive em casa da tia que os acolheu em Mouriscas só pensa em poder trabalhar.
“Estamos legais, a tratar de todos os papéis. Já temos número de contribuinte e esperamos poder encontrar trabalho”, diz Jennifer com a esperança de poder refazer a sua vida em Mouriscas ou na região. Gustavo sabe que pode não ser fácil encontrar trabalho nas suas áreas, mas para já querem trabalho para darem início, de forma definitiva, a nova etapa na sua vida.
A Samantha, de cinco meses, os pais Gustavo e Jennifer (de 33 e 30 anos, respetivamente), e a avó (Íris Martinez, com 63 anos) vivem com tranquilidade e saudade longe da sua terra, mas com a esperança e a vontade num futuro mais risonho em Portugal.
A família abriu-lhes as portas, a comunidade foi solidária com as necessidades imediatas e agora só lhes falta um trabalho para começar a viver o “sonho português”.
Jerónimo Belo Jorge
Crédito: Jornal de Abrantes