Desistências de última hora, uma coluna militar parada num sinal vermelho, um membro do Governo com sono e dois a chorar: o golpe do 25 de Abril que derrubou a ditadura também se fez de episódios caricatos.
Entre a noite de 24 e a tarde de 25 de abril de 1974, um grupo de jovens capitães põe em marcha uma operação militar que depõe, em menos de 24 horas, uma ditadura de meio século.
São horas tensas, alucinantes, mas também repletas de episódios caricatos.
Madrugada 24 de abril
"Está tudo sossegado"
Na noite de 24, ainda antes da transmissão da primeira senha – às 22:55, quando a voz de João Paulo Dinis anunciaria aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa Paulo de Carvalho com “E Depois do Adeus”, acionando a engrenagem do golpe – o Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas (MFA) sofre a primeira baixa: o Regimento de Infantaria 1, da Amadora, faz saber, naquele momento, que não alinha. O golpe arranca sem que o movimento tenha quem se ocupe do forte de Caxias nem da sede da polícia política (PIDE/DGS).
Horas depois, às 03:00, já com as tropas do movimento revoltoso nas ruas, o ministro do Exército, Andrade e Silva, ainda trabalha. Planeia viajar até Beja dali a poucas horas. O MFA interceta uma conversa entre este, no seu gabinete, e o ministro da Defesa, Silva Cunha.
Cunha pergunta-lhe como está a situação e Silva responde que tudo está “sem alteração e perfeitamente sob controlo”. E acrescenta: “Peço-lhe que não se preocupe, pois está tudo sossegado e não há qualquer problema em qualquer ponto do país”.
Pouco depois desta conversa, Silva Cunha recebe um telefonema do diretor geral de Segurança, o major Silva Pais, que lhe diz: “Pode dormir descansado, senhor ministro”.
25 de abril
Coluna de Maia arranca de Santarém
Praticamente à mesma hora, sai da Escola Prática de Cavalaria de Santarém uma coluna de 240 homens, comandada por Salgueiro Maia, o capitão que acabaria por negociar nesse dia, no largo do Carmo, a rendição do presidente do conselho, Marcello Caetano.
Do outro lado da barricada, às 03:30, o Comandante da PSP do Porto, coronel Santos Júnior, toma conhecimento da ocupação do Quartel-general da Região Militar Norte. É só neste momento que o regime se apercebe de que a revolução está na rua.
Duas "Berliet" perderam-se em Camarate
Pelas 04:00, sob o comando do capitão Rui Rodrigues, então com 30 anos, uma força da Escola Prática de Infantaria de Mafra tomou de assalto o aeroporto de Lisboa, tendo sido o último objetivo do MFA a ser atingido e que levou ao adiamento, por 26 minutos, da leitura do primeiro comunicado vitorioso do Movimento no Rádio Clube Português.
Constituída por 150 homens e por 30 viaturas, das quais duas "Berliet", perderam-se pelo caminho no trajeto entre Mafra e Lisboa.
"Perdi-me. Fiz o reconhecimento do trajeto no dia 21 de abril, de dia, mas marchámos à noite, o que é diferente. Não quis entrar diretamente em Lisboa por causa da Polícia de Viação e Trânsito. A GNR era a nossa principal inimiga. Para a evitar, dei a volta por Camarate e foi aí que me perdi", contou Rui Rodrigues.
“Tirando este percalço”, a operação decorreu sem incidentes.
"Entrámos no aeroporto sem dificuldades. Disse que havia uma ameaça terrorista e que ia tomar conta do aeroporto. Ninguém se opôs. Os meus grandes problemas no Aeroporto foram civis, não militares, como, por exemplo, dar de comer àquela gente toda, agentes da PIDE/DGS, polícias, que confinámos a uma área, sem os prender. Acabou por ser a EPI a pagar o almoço do dia 25. Ainda me lembro do preço: 25 mil escudos".
Pelas mesmas horas, quando elementos do movimento se dirigem às instalações do Rádio Clube Português para ocupar a estação, de onde seria emitido o primeiro comunicado do MFA, cerca das 04:30, o porteiro, vendo os militares, e ouvindo-os explicarem que estavam ali a fazer um golpe de Estado, sugeriu-lhes que voltassem de novo por volta das 07:00, altura em que, argumentava, certamente encontrariam mais gente.
Parar no sinal vermelho
Marcello Caetano é surpreendido no primeiro sono pelo diretor-geral de Segurança, que lhe diz que a revolução está na rua e lhe recomenda que se dirija para o quartel do Carmo. Ele acede. Ao passar perto do Terreiro do Paço, vê patrulhas que ocupam as embocaduras das ruas. Pensa: “O general Andrade e Silva está tomando as suas precauções.” Não estava. São tropas revoltosas. Deixam-nos passar sem darem por eles.
Com o relógio perto de marcar as 06:00, a coluna de Salgueiro Maia aproxima-se de Lisboa. Carlos Beato, antigo militar de Abril, adjunto de Salgueiro Maia nesta missão, conta que “ninguém” naquela coluna “conhecia muito bem Lisboa”.
Tinham estudado os mapas de véspera. Quando se aproximam da Cidade Universitária, o capitão bate com a cabeça no vidro do jipe em que viaja. A coluna parara. Salgueiro Maia pergunta: “O que é isso, pá?”. E ouve: “'Tá vermelho, meu capitão!'”.
Nas suas memórias, o subsecretário de Estado do Exército, Viana de Lemos, conta que nessa noite “estava farto e tinha sono”. Por isso, justifica, limita-se a assistir “como mero espetador por ter constatado, bem cedo, que não havia probabilidade de deter a insurreição, a menos que se corresse o risco de um derramamento de sangue”.
Presunto e cravos para os soldados
Mais tarde, já depois das 12:00, no Rossio, há um episódio que conforta o estômago dos militares, mas que os cravos – que depressa se tornaram ícone e até nome da revolução – ofuscam. Ao lado das vendedoras que distribuem estas flores, brancas e vermelhas, pelos soldados há, conta Salgueiro Maia, “um homem com um presunto e uma faca”, a oferecer o petisco.
Depois das 15:00, esgotado o tempo concedido para a rendição do Quartel do Carmo, Salgueiro Maia dá ordem para que se abra fogo sobre o Quartel. São disparadas várias rajadas, há vidros partidos. Um repórter perde um sapato.
Hora e meia depois, e ainda perante um impasse, aguardando a rendição, Maia entra no Quartel para falar com Marcello Caetano. Contaria depois que lá dentro ouve “um choro de criança”. César Moreira Baptista, ministro do Interior, e Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros, “choram como duas crianças, com um ataque de histeria”.
Responder só a "tiro direto"
Se as tropas do capitão Salgueiro Maia dispararam várias rajadas contra o Quartel do Carmo, a verdade é que só tinham ordens para responder a “tiro direto”.
O episódio é lembrado por Maia, numa entrevista ao jornalista Adelino Gomes, publicada na revista “Fatos e Fotos” apenas uma semana depois do golpe.
“As ordens aos meus homens eram para responder apenas em tiro direto. Nem mesmo responderiam aos tiros para o ar”, afirmou o capitão.
Pela altura em que Marcello se rende, já as embaixadas estrangeiras em Lisboa estavam a comunicar os acontecimentos para Paris, Bona e Washington.
Costa Gomes no hospital militar, com mala e passaporte
No dia 25 de Abril de 1974, António de Spínola tentou, sem sucesso, falar com Costa Gomes, um dos futuros homens fortes da Junta de Salvação Nacional (JSN) e ex-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA).
Costa Gomes estava a acompanhar a mulher que fora fazer exames ao hospital militar, na Estrela. “Tinha sido um estratagema para não se comprometer com o golpe militar”, afirmam José Matos e Zélia Oliveira, autores do livro “Rumo à Revolução” (Tinta da China).
O ex-CEMGFA levou consigo “uma mala com todos os documentos que precisa, incluindo o passaporte, caso tenha de sair do país”. e ali ficou a acompanhar a mulher, ao mesmo tempo que recebe visitas, como do seu antigo chefe de gabinete, tenente-coronel Ferreira da Cunha, que lhe leva mensagens do MFA.
Mais uma explicação dada no livro: “Na eventualidade de o golpe falhar, a polícia ou a PIDE/DGS podiam prendê-lo em casa, no centro de Lisboa, e no Hospital Militar estava mais salvaguardado, não podendo ser preso com tanta facilidade estando numa instituição militar”.
Telefones falharam para Washington
Para os Estados Unidos, porém, as comunicações tiveram de ser por telegrama porque os telefones não funcionaram.
Das comunicações entre a representação diplomática norte-americana em Lisboa e o Departamento de Estado, depositadas nos Arquivos Nacionais dos Estados Unidos, percebe-se a cautela com que a diplomacia encarou o golpe de Estado do MFA.
Mas fica, também, um registo insólito: os telefones falharam no dia em que caiu a ditadura em Portugal, precisamente ao fim da tarde, à hora a que o chefe do Governo, Marcello Caetano, se rendeu no Largo do Carmo, em Lisboa, entre as 18:00 e as 19:00.
Desde Lisboa, os diplomatas enviaram pelo menos dois telegramas, pedindo que lhes telefonassem “imediatamente” desde Washington. E até davam os números da embaixada (555141 ou 555149).
Logo pela manhã, quando o desfecho do golpe era desconhecido, o registo dos diplomatas norte-americanos em Lisboa, mas também nos Açores, onde os EUA têm uma base, nas Lajes, era cauteloso.
“Está tudo tranquilo”, lia-se num telegrama do Consulado em Ponta Delgada enviado para Washington às primeiras horas do dia em que o Movimento das Forças Armadas derrubou a ditadura, e que está depositado nos Arquivos Nacionais (http://aad.archives.gov/aad/series-description.jsp?s=4073).
De Lisboa, o primeiro telegrama, com o mesmo título, “Distúrbios em Portugal”, surge pelas 09:50, fazendo uma mera descrição do que estava a passar-se: tanques nas ruas de Lisboa, sedes de ministérios cercadas pelos militares, o relato dos apelos à calma, feitos pelo MFA através da rádio.
Lusa