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Geopolítica da UE: Um Kit de Emergência, a Inteligência Artificial e a Reprogramação da Aceitação Pública

12/04/2025 às 11:42

Na última semana foi noticiado que a Comissão Europeia apresentou a Estratégia de Preparação da UE . Nesta, foi recomendado às famílias dos Estados-membros que disponham de um kit de emergência que lhes possa assegurar uma autossuficiência de, pelo menos, 72 horas. Esta proposta foi inspirada em iniciativas de países como a Suécia, Alemanha e Finlândia (entre outros) e integra um pacote de 30 medidas cujas finalidades incluem o fortalecimento da resiliência civil perante uma vasta possibilidade de incidentes, crises, ameaças, onde se podem incluir desastres naturais, pandemias, ciberataques ou até eventuais agressões militares.

A apresentação da estratégia por Hadja Lahbib (Comissária Europeia para a Igualdade, Preparação e Gestão de Crises), ganhou atenção pelo tom informal do seu vídeo promocional onde demonstrou alguns itens essenciais para um kit de sobrevivência. Para além dos elementos básicos como a água, a comida, ou medicamentos, a comissária belga incluiu objetos como um baralho de cartas “porque um pouco de distração nunca fez mal a ninguém”. Contudo, é impossível não sublinhar que a leveza desta abordagem contrasta, necessariamente, com a gravidade do subtexto: a UE está em preparação para cenários de crise prolongada e para o aumento das tensões geopolíticas como, aliás, destacou o The Guardian ao expor que esta estratégia terá sido publicada um dia após o Ministério da Defesa da Dinamarca ter anunciando que iriam adiantar os planos para introduzir o serviço militar para mulheres no espaço de dois anos.

Mais uma vez, é imperativo fazer a questão: de que modo é que esta ‘retórica securitária’ se articula com o atual investimento da UE em inteligência artificial e tecnologia? Justamente na mesma semana em que anunciou a Estratégia de Preparação, a Comissão Europeia anunciou um reforço de 1,3 mil milhões de euros através do programa DIGITAL Europe – Work Programmes, com um foco estratégico e de consolidação face ao fortalecimento da IA, da cibersegurança e da infraestrutura digital europeia para o período de 2025-2027. O objetivo declarado foi o de acelerar a transição digital, reforçar a soberania tecnológica da Europa e garantir resiliência e adaptabilidade digital em setores críticos. Terá sido uma coincidência que estas iniciativas sejam promovidas em paralelo?

A crescente militarização do espaço digital e a vulnerabilidade das infraestruturas críticas fazem com que a IA não seja apenas uma ferramenta de inovação, mas um ativo geoestratégico essencial para a resiliência da União Europeia. A convergência entre preparação civil e transformação tecnológica insere-se numa lógica amplificada de securitização da sociedade europeia. A partir da pandemia da Covid-19, a UE tem vindo a expandir a sua influência em políticas de resposta a crises que são altamente necessárias, mas assume um papel que era tradicionalmente reservado aos Estados-membros. Isto pode significar que, embora nos últimos anos a União Europeia tenha sido vista como um bloco fundamentalmente económico, hoje parece movimentar-se no sentido de consolidar uma identidade geopolítica e de defesa comum, ainda que sem consenso absoluto entre os países. Um reflexo disto diz respeito ao debate a propósito do plano de gastos militares da Comissão Europeia, renomeado de “Rearm Europe” para “Readiness 2030” (“White Paper on European Defence”) que, após as críticas de países como a Itália e Espanha, evidenciou mais uma vez que a própria linguagem, a seleção de termos específicos, é uma zona de disputa política dentro da própria UE.

Este contexto também levanta questões sobre o impacto da IA na segurança e na tomada de decisões estratégicas. É aqui que surgem novamente os modelos preditivos baseados em inteligência artificial, pois são cada vez mais utilizados na gestão de crises, desde a previsão de desastres naturais até à própria deteção de ameaças cibernéticas e/ou militares. No entanto, nunca é demais sublinhar que a crescente dependência destas tecnologias comporta riscos significativos, pois os algoritmos não só podem reforçar vieses, como também é possível que ampliem as dinâmicas de desinformação, ou o desencadeamento de respostas automáticas desproporcionais a certos momentos de crise.

Cabe-nos perguntar: será que estas medidas, ao enfatizarem a preparação para crises e ao impulsionarem novos gastos em defesa e tecnologia, podem influenciar a opinião pública, em vista a facilitar a aceitação de políticas securitárias mais robustas? A promoção de uma cultura de prevenção é essencial, mas deve ser acompanhada por um modelo de comunicação transparente que evite o alarmismo e promova, enquanto fortalece, a confiança pública.

Talvez seja por este motivo que o alerta da Comissão Europeia para a necessidade de um “kit de emergência” esteja a ser interpretado para além da sua dimensão prática. Mais do que preparar a população para o inesperado, a UE está a reestruturar-se para uma conjuntura onde a inteligência artificial, a cibersegurança e a defesa digital se tornam eixos centrais da sua identidade geopolítica.  Assim, a questão central que se impõe para reflexão não é apenas saber se a população da UE está preparada para 72 horas de autossuficiência, mas sim se as suas instituições estão aptas para gerir, de forma eficaz, ética e estratégica, a interseção entre tecnologia, segurança e democracia.

Lia Raquel Neves

Comunicadora de Ciência

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