O relatório de avaliação do incêndio de Fundada, que ocorreu em julho de 2019 em Vila de Rei e Mação, considera que, na fase mais crítica de combate, foi “francamente notada” a falta de meios aéreos.
O relatório do Observatório Técnico Independente agora divulgado incidiu naquele que foi o maior de todos os incêndios ocorridos em 2019, com uma área ardida estimada em 9.249 hectares (cerca de 22% da área total ardida o ano passado, que foi perto de 42.000 hectares), e também aquilo que se destacou pela relevância dos impactos nos povoamentos florestais atingidos e na agricultura.
No combate ao incêndio, os técnicos concluem que “a mobilização de meios aéreos acabou por não corresponder à fase de maior necessidade”, estimando-se que “nas primeiras 16 horas do incêndio a área afetada foi cerca de 65% do total da área ardida deste incêndio, que durou três dias a ficar dominado e cinco dias até ser extinto”.
“Na fase mais crítica a falta de disponibilidade destes meios foi francamente notada”, sublinha.
O combate ao incêndio que se iniciou na tarde do dia 20 de julho de 2019 no concelho de Vila de Rei e se estendeu depois aos de Mação e Sertã envolveu, no total, 1.946 operacionais e 703 meios (aéreos e terrestres), mas “a alocação de meios aéreos a este incêndio poderá ter comprometido a obtenção de resultados mais favoráveis”, o que foi justificado por “alguma simultaneidade em ocorrências desta tipologia”.
No primeiro dia estiveram envolvidos cinco meios aéreos, quatro da mesma tipologia (aviões médios anfíbios tipo Fire Boss) e um helicóptero médio, no segundo dia foram mobilizados 11 meios aéreos, obedecendo à prática de “mobilização musculada de meios aéreos”, estratégia que, contudo, “não teve o resultado pretendido” dadas as tipologias e autonomias semelhantes, que concorreram para “a sua desmobilização igualmente simultânea, proporcionando largos períodos em que não houve meios aéreos disponíveis para empenhar no teatro de operações”.
Como exemplo, o relatório aponta o facto de às 15:55 de dia 21, quando se verificou uma “reativação a arder com intensidade na zona de Sesmarias em direção ao Centro de Acolhimento de São João do Peso”, não estar a atuar nenhum meio aéreo.
Por outro lado, o relatório refere que o uso de fogo tático e contrafogo neste incêndio “foram muito reduzidos”, recomendando “uma melhor consideração da possibilidade de utilização destas técnicas de forma mais segura e profissional”.
“A sua utilização durante os períodos de noite, com vento mais reduzido e humidades relativas altas, foi aparentemente reduzida, não aproveitando adequadamente a janela de oportunidade das condições mais favoráveis nesse período”, acrescenta.
O relatório sustenta ainda a discrepância dos sistemas de informação utilizados em Vila de Rei e em Mação, que fez com que, com a passagem de comando e a mudança de viatura de suporte, se perdesse informação.
Nas “lições aprendidas”, contidas no final do documento, o Observatório afirma que “não pode deixar de chamar a atenção para os problemas de diferente abordagem entre concelhos ou distritos vizinhos”, diferença que foi “constatada na elaboração dos mapas de perigosidade, na adoção de medidas de prevenção e também na área do combate”.
“Não é aceitável que possam ocorrer falhas na transmissão da informação e da estratégia quando o incêndio percorre territórios diferentes por serem utilizados sistemas diferentes”, salienta.
Assim, recomenda “fortemente” que a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil “assegure que haja apenas um sistema único a operar a nível nacional que poderá, e deverá, incorporar todos os bons desenvolvimentos de sistemas produzidos a outros níveis, como o ‘MacFire’” (desenvolvido em Mação).
O Observatório reconhece que no concelho de Mação existe, desde 1990, “um esforço que se pode considerar como exemplar a nível nacional, no sentido de uma prevenção geral do território”.
Tal como havia sido já apontado anteriormente, o relatório considera “muito provável a hipótese de causa intencional”, salientando que foi recolhida “prova material do meio de ignição utilizado” e que decorre a investigação por parte da Polícia Judiciária.
Sobre a fase de recuperação após fogo, o Observatório sublinha que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas “cumpriu as primeiras etapas do processo num prazo relativamente curto”, mas “estão por realizar as fases seguintes”, nomeadamente a cartografia das zonas prioritárias para intervenção e o levantamento das infraestruturas afetadas, “de modo a poderem ser elaborados os projetos de execução para intervenção no âmbito do PDR [Programa de Desenvolvimento Rural] 2020”.
Autarquias reagem ao relatório dos incêndios de 2019
Vila de Rei espera "uma reação por parte do Governo":
A Antena Livre falou com o vice-presidente da autarquia vilarregense, Paulo César Luís, que afirma que "o relatório apresenta um conjunto de conclusões que já eram um pouco aquilo que eram as nossas conclusões à vista desarmada e de quem andou no terreno e se apercebeu de um conjunto de coisas".
Nomeadamente, "a dificuldade acrescida pelo facto do ataque inicial através de meios aéreos não ter sido tão profícuo e tão incisivo como na nossa opinião deveria ter sido, derivado a um conjunto de fatores", bem como "o problema que se constitui de cada vez que se muda uma equipa no comando e os diferentes meios tecnológicos e um conjunto enorme de situações que ocorreram durante o incêndio e que nós fomos apontando e que estão explanados no relatório".
Paulo César Luís revela ainda apreensão devido ao facto de "ao fim de estes anos todos e após tantas tragédias que aconteceram no nosso país continuamos a cair nos mesmos erros do passado".
O responsável deu conta de que a autarquia está ainda a analisar este relatório no sentido de decidir aquilo que vai fazer: "em função daquilo que vai ser a nossa análise ao relatório, com certeza que o Município tomará uma iniciativa e vamos estudar a forma de melhor estarmos concertados, também com outros municípios afetados quer por este incêndios quer por outros, de forma a vermos melhorias naquilo que é a forma como lidamos com estas situações".
Paulo César recorda que durante o incêndio a resposta que o Município obteve por parte das autoridades perante as questões colocadas por responsáveis da autarquia foi "via comunicação social".
Já relativamente à polémica que se gerou associada às declarações que proferiu, bem como o presidente da Câmara de Mação, de que "o Estado falhou", o vice-presidente de Vila de Rei refere que "o senhor primeiro-ministro confundiu ou percebeu mal as minhas palavras e decidiu culpar os autarcas por tudo aquilo que estava a acontecer" e que o Município espera "uma reação por parte do Governo acerca daquilo que consta no relatório" e também "se os Município têm de facto responsabilidade naquilo que está lá explanado, nomeadamente, controlo e disponibilização de meios aéreos".
"Eu gostaria de ver como é que o Governo justifica aquilo que aconteceu", disse, concluindo que "a breve trecho, o Município de Vila de Rei terá uma reação oficial acerca daquilo que é o relatório e daquilo que está lá explanado, até porque vamos ter reunião de Câmara na próxima sexta-feira e este assunto será lá debatido".
Mação defende "reflexão profunda" sobre "chamada de atenção" que é o relatório:
Já o concelho vizinho e altamente fustigado pelos incêndios - Mação - defende que é necessário fazer uma "reflexão profunda" sobre os dados deste relatório.
Em declarações à Antena Livre, o presidente da Câmara Municipal de Mação, Vasco Estrela, admite não sentir surpresa acerca dos dados divulgados e assume que "o relatório retrata aquilo que foi a nossa perceção, retrata aquilo que eu, principalmente, fui dizendo em termos de que os meios não eram suficientes e, desse ponto de vista, o relatório é cristalino e demonstra aquilo que foi dito".
"Uma vez mais se constata que há aqui uma mudança de discurso que terá de ser feita. Este discurso de que os meios são sempre suficientes e os necessários é algo que depois não é comprovado no terreno pelas pessoas, pelos responsáveis, pelos bombeiros, pelos políticos e que depois traduz-se em contradições entre aquilo que é o discurso e a prática, em querelas que são facilmente evitáveis se se falar de outro modo", diz o autarca que salienta que este relatório é uma "chamada de atenção para aquilo que deve ser feito no futuro e, portanto, faço votos para que a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil possa refletir cabalmente sobre aquilo que o relatório refere".
Vasco Estrela admite que "temos de ter consciência, como é evidente, de que nunca há meios suficientes para grandes tragédias" mas que "de acordo com aquilo que são cada um dos momentos, temos [de ter] a consciência de que estamos a tomar as melhores decisões, penso que é importante e não sei se isso acontece sempre".
Questionado pela Antena Livre sobre se já contactou algum membro do Governo central, o autarca respondeu que não lhe compete a si "entrar em contacto com ninguém. Todos sabemos aquilo que eu disse, todos sabemos aquilo que outros disseram, todos sabemos aquilo que me tentaram fazer (...) o trabalho da Câmara é referido abudantemente, o extraordinário trabalho que aqui é desenvolvido, principalmente pelo António Louro, é sugerido que sigam o exemplo do Município de Mação e portanto acho que não temos muito mais a dizer. Provavelmente, alguém teria algo a dizer-nos depois disto, não é seguramente a Câmara de Mação".
Com um "sentimento misto" ao ler o relatório, Vasco Estrela fala de "alguma tranquilidade, no sentido em que vem validar aquilo que nós dissemos (...) e no sentido de que não podemos ser acusados de estarmos a politizar e a dramatizar e aligeirar responsabilidades" mas refere também um sentimento de "preocupação e tristeza por perceber que uma vez mais houve uma série de coisas que não correram bem e que podia ter sido minorado o sofrimento, minorada a destruição e lamento estas circunstâncias".
"Agora estamos focados no futuro, em tentar resolver os enormes problemas que temos, a tentar revitalizar o território, mas não esquecemos nunca aquilo que nos aconteceu e aquilo que nos foi sendo feito", conclui o autarca que diz que agora "não valerá muito a pena e não haverá muito que fazer e portanto neste momento não ponderamos nenhuma diligência".
Ana Rita Cristóvão e Patrícia Seixas (C/LUSA)