Encontramo-nos numa época em que se tornou quase banal descobrir planetas em órbita de outra estrela, com mais de 5000 já recenseados. Os primeiros mundos distantes a incorporarem esta lista foram sobretudo planetas gigantes, semelhantes, mas também em vários aspetos muito diferentes de Júpiter e Saturno. Os astrofísicos começaram já a obter dados sobre as atmosferas de exoplanetas, mas questões fundamentais sobre a atmosfera do maior planeta do Sistema Solar estão ainda por responder.
Para compreender o que acontece nas nuvens e camadas de ar de Júpiter é necessário estudá-lo ao longo do tempo, em observações continuadas. Agora, pela primeira vez, um instrumento desenvolvido para encontrar e analisar mundos a anos-luz, os exoplanetas, foi apontado a um alvo do Sistema Solar, a 43 minutos-luz de distância da Terra: o planeta Júpiter. O espectrógrafo ESPRESSO, instalado no telescópio VLT, do Observatório Europeu do Sul (ESO), foi utilizado por uma equipa do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) para medir a velocidade dos ventos em Júpiter. Os resultados foram publicados na revista científica Universe.
O método utilizado agora com o ESPRESSO foi desenvolvido pelo grupo de Sistemas Planetários do IA com outros espectrógrafos para estudar a atmosfera de Vénus. O grupo do IA tem medido os ventos deste planeta vizinho e há vários anos que contribui para a modelização do sistema geral da sua atmosfera. Agora, a aplicação exploratória deste método com um instrumento “topo de gama” como é o ESPRESSO resultou num sucesso que abre novos horizontes ao conhecimento do nosso bairro cósmico. Este trabalho afirma a viabilidade de monitorizar de forma sistemática as atmosferas mais longínquas, nos planetas gasosos.
Durante cinco horas, em julho de 2019, a equipa apontou o telescópio VLT à zona equatorial de Júpiter, onde se situam nuvens de tom claro e a maior altitude, e aos cintos equatoriais norte e sul deste planeta, que correspondem a ar descendente e que forma faixas de nuvens escuras e mais quentes, numa camada mais profunda da atmosfera.
“A atmosfera de Júpiter, ao nível das nuvens visíveis a partir da Terra, contém amoníaco, hidrossulfeto de amónia e água, que formam as distintas faixas vermelhas e brancas”, diz Pedro Machado, do IA e da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa). “As nuvens superiores, localizadas na zona de pressão de 0,6 a 0,9 bares, são feitas de gelo de amoníaco. As nuvens de água formam a camada mais densa e inferior, e têm a influência mais forte na dinâmica da atmosfera.”
O método que a equipa desenvolveu é designado velocimetria de Doppler e baseia-se na reflexão da luz visível do Sol pelas nuvens da atmosfera do planeta-alvo. Essa luz refletida é desviada no seu comprimento de onda na proporção da velocidade a que as nuvens se deslocam em relação ao telescópio na Terra. Assim se obtém a velocidade instantânea do vento no ponto observado.
Com o ESPRESSO, a equipa conseguiu medir em Júpiter ventos de 60 até 428 km/h com uma incerteza inferior a 36 km/h. Estas observações, aplicadas com um instrumento de alta resolução a um planeta gasoso, têm os seus desafios, explica Pedro Machado. “Uma das dificuldades centrou-se na ʻnavegaçãoʼ sobre o disco de Júpiter, ou seja, em saber com exatidão para que ponto do disco do planeta estávamos a apontar, devido à enorme resolução do telescópio VLT. Já na investigação propriamente dita, a dificuldade prendeu-se com o facto de estarmos a determinar ventos com uma precisão de alguns metros por segundo quando a rotação de Júpiter é da ordem dos dez quilómetros por segundo ao nível do equador e, para complicar, por ser um planeta gasoso, e não um corpo rígido, rodar a diferentes velocidades conforme a latitude do ponto que observávamos.”
Para verificar a eficácia da velocimetria de Doppler a partir de telescópios na Terra na medição dos ventos em Júpiter, a equipa reuniu também medições obtidas no passado de modo a comparar os resultados. A maior parte dos dados existentes foram recolhidos por instrumentos no espaço e recorreram a um método diferente, que consiste em obter valores médios da velocidade do vento a partir do seguimento de padrões de nuvens em imagens captadas em momentos próximos.
José Eduardo Silva, segundo autor do artigo, então investigador do IA e Ciências ULisboa e atualmente colaborador, utilizou em particular imagens recolhidas pela sonda Cassini (NASA/ESA) aquando da sua passagem por Júpiter em dezembro de 2000. A consistência entre esse histórico e os valores medidos neste estudo agora publicado confirma a viabilidade de implementar a velocimetria de Doppler num programa de monitorização dos ventos de Júpiter a partir da Terra.
A monitorização permitirá recolher dados sobre como os ventos mudam ao longo do tempo e será essencial para desenvolver um modelo fiável da circulação global da atmosfera de Júpiter. Este modelo computacional deverá reproduzir as diferenças dos ventos em função da latitude, assim como as tempestades de Júpiter, para ajudar a compreender as causas dos fenómenos atmosféricos que observamos neste planeta. De modo inverso, o modelo ajudará a preparar futuras observações com informação sobre a pressão e a altitude das nuvens na mira do telescópio. José Ribeiro, estudante de doutoramento no IA e de Ciências ULisboa, apresentou num artigo na revista Atmosphere uma análise a um desses modelos, de nome NEMESIS e desenvolvido pela Universidade de Oxford, onde identificou, em particular, a necessidade de melhorar o conhecimento sobre as camadas de nuvens.
A equipa tenciona estender as observações com o ESPRESSO a uma maior cobertura do disco do planeta Júpiter, assim como temporalmente, recolhendo dados dos ventos durante todo um período de rotação do planeta, que é de quase 10 horas. A restrição das observações a certas gamas de comprimentos de onda permitirá também medir os ventos a diferentes altitudes, obtendo-se assim informação sobre o transporte vertical das camadas de ar.
Uma vez dominada a técnica para o maior planeta do Sistema Solar, a equipa alimenta a expectativa de a aplicar à atmosfera dos outros planetas gasosos, tendo Saturno como o próximo alvo. O sucesso destas observações com o ESPRESSO revela-se importante num momento em que se concebe o seu sucessor, o ANDES, para o futuro Extremely Large Telescope (ELT), também do ESO e atualmente em construção no Chile, mas também a futura missão JUICE, da Agência Espacial Europeia (ESA), dedicada a Júpiter e que fornecerá dados complementares.
Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço