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Mação: É tempo de reconstrução!

27/07/2018 às 00:00

A alegria de viver de quem ficou “só com a roupa do corpo”

Tinha-me prometido que não escreveria nem mais uma linha acerca dos incêndios de 2017. Esse juramento protegia-me de reviver, através da escrita, todas as emoções sentidas nos dois meses de horror, apesar de teimarem em não desaparecer do pensamento. Passado um ano, o coração não acalmou e sei que não vai acalmar nunca. Mas é tempo de seguir em frente. Se quem ficou nos territórios afetados tem força para o fazer e se a própria floresta renasce, quem sou eu para teimar no contrário? É tempo de reconstrução. E no concelho de Mação, as obras estão um pouco por todo o lado. Em Casas da Ribeira, fomos inteirar-nos do andamento da reconstrução de uma casa que foi totalmente consumida pelas chamas no dia 25 de julho de 2017. E é a história de Maria de Jesus Marques, de 86 anos, que lhe conto.

 

Ao descer o vale em direção a Casas da Ribeira, no concelho de Mação, a paisagem ainda nos traz à memória o inferno que se viveu na terra. Nas serras, de pé, só paus queimados. No coração, uma tristeza imensa. Na alma, a esperança de um futuro com um verde horizonte.

“Eu estava sozinha e todo dia trabalhei a «augar» a casa e em redor da casa, enquanto as torneiras davam. Quando não davam as torneiras, andava com um caldeiro a acartar a água e a «augar» aquilo tudo por cima. Cheguei a pontos, caí. Gritei pelos bombeiros, para que me acudissem”.

Foi assim que começou o relato de Maria de Jesus Marques, 86 anos, que nunca me negou um sorriso enquanto relembrava aquele fatídico dia. “Como estava tudo molhado por baixo, não ardeu nada. Fui ver ao sótão. Aparecia uma fagulha no chão e eu, com um tapete molhado, abafava aquilo. Depois aparecia noutro lado e eu abafava enquanto ia gritando para que me acudissem. É que as ripas e os barrotes eram de madeira. Se fossem de cimento, eu vencia aquilo”, afirma, convicta, Maria de Jesus.

Maria de Jesus com o lenço que usava no dia do incêndio

E continua, num relato para mim arrepiante mas que era acalmado por uma energia e uma alegria, vinda, confesso, não sei de onde mas que aquela pessoa, sentada na minha frente, me conseguiu transmitir. “E já ouvia estrondos. Eram as telhas a estalar com o calor. Foram as telhas que partiram e que aqueceram os barrotes. Às tantas, já não tinha por onde sair. Tive que passar pelo lume para descer a escada. Cheguei a meio, caí pelas escadas abaixo. Vim para a rua e vi passar um carro dos bombeiros, mas era daqueles que não trazia água. Pediram-me para ficar no caminho enquanto os bombeiros não chegassem, mas não vieram e eu vi a minha casa arder toda”.

Entretanto, foi o comandante dos Bombeiros Voluntários de Mação, Pedro Jana, “que ouviu os meus gritos e veio ter comigo. Eu pedi-lhe para ele deitar água enquanto eu ia a casa buscar umas roupas e as minhas recordações. Mas ele disse-me logo: «a senhora já daqui não sai!» E eu insisti, mas ele não deixou e chamou a ambulância. Levaram-me para o Centro de Saúde”.

A viagem até Mação foi, segundo contou Maria de Jesus, uma autêntica aventura… entre querer fazer a viagem a pé e não ter noção das queimaduras, foi mais um relato que provocou entre nós algumas gargalhadas. “Eu sabia lá como é que eu estava. Eu já estava fora de mim”, afirma, com a boa disposição que percebi fazer parte dela. E repetia: “Eu não estou queimada. É aqui só «maneiritas» na cara e depois eu ponho um pouco de mel”. Afinal, tinha queimaduras na cabeça, na cara, nos braços e nas pernas.

“Chorei muito na altura” e só se “arrepende” de não ter conseguido “trazer as fotografias do meu marido, de quando ele era novo, as fotografias dos casamentos dos meus filhos, a cama do casamento, que tinha renda, e as roupas melhores, que estavam guardadas. Tinha lá um fato que só o tinha vestido uma vez e que era para a minha mortalha. Agora nem mortalha tenho”.

“Sou uma pessoa sem nada no mundo e tanto que eu trabalhei”… Sem nada, não. Testemunhei a alegria e a força de viver contagiantes”.

Recuperada das mazelas sofridas, e já com outras quedas pelo meio, Maria de Jesus, que ficou “só com a roupa do corpo”, lá continua a tratar da horta e a andar rija como só as mulheres do seu tempo conseguem ser.

Maria de Jesus e o filho, José Afonso, na casa agora em obras

Alojada em casa de um dos filhos, a cerca de 20 metros da sua casa, Maria de Jesus lá vai espreitando a obra de reconstrução. “Eu sei lá o que é que acho da obra… o que eu gostava era de ver o palheiro arranjado. Ao menos com um telhado”, desabafou.

Mas a obra que iniciou “em fins de maio, princípios de junho” está a decorrer a bom ritmo e Maria de Jesus não vê a hora de regressar. É que apesar de estar bem instalada, não se cansa de repetir que está “numa casa emprestada”.

A obra é da responsabilidade do Fundo de Apoio à revitalização das áreas afetadas pelos incêndios do verão de 2017, gerido pela Fundação Gulbenkian.

No concelho de Mação, foram 23 as habitações afetadas pelos incêndios de 2017.

De Casas da Ribeira, saí com o coração cheio e com a certeza que Maria de Jesus é uma sobrevivente e que vai aproveitar da melhor forma os anos que a vida ainda lhe reserva.

Patrícia Seixas

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