Sábado, dia 31 de outubro de 2020. Passavam 15 minutos das 16 horas e a fila junto ao lagar da COAGIOLIMO em Mouriscas era notória. Não era, contundo, uma fila como noutros anos. Por exemplo, como em 2019, em que seria muitas vezes maior.
Meia dúzia de tratores, de pequeno porte, um motocultivador com reboque, duas carrinhas de caixa aberta e dois carros ligeiros. Era este o conjunto de meios que ali aguardavam a sua vez para fazer a entrega da azeitona no lagar. E enquanto aguardavam, porque a azeitona tem de ser descarregada, pesada e os sacos despejados no tapete rolante, as conversas eram, invariavelmente, sobre o ano. O ano da pandemia, que domina as nossas vidas, mas também sobre a míngua de azeitona. “Isto este ano é um fim de semana”, diz um dos olivicultores enquanto outro atira “em muitas nem dá para pagar o trabalho”.
Em Mouriscas, como em tantas outras aldeias da nossa região centro, o ano teve condições meteorológicas madrastas para a frutificação da azeitona. “Pouca e dessa pouca há muita mirrada”, explica um dos produtores que aguarda, pacientemente, pelo seu momento de descarregar a produção. Noutros anos eram famílias inteiras que andavam na lufa-lufa da apanha da azeitona. E ali, à volta do “dia de Todos os Santos” vinham os familiares das cidades ajudar. Este ano, nem isso. Primeiro porque esse fim de semana, de 31 de outubro e 1 de novembro, tinha regras claras emanadas pelo estado de calamidade nacional, com a proibição de circular entre concelhos. Depois porque a própria azeitona é em pouca quantidade.
E ali, na fila, fala-se deste ou daquele que até tem uma, ou outra propriedade com oliveiras mais carregadas de fruto. Mas são poucos esses casos.
À medida que chegamos perto do cais de descarga percebe-se que a própria direção da Cooperativa de Olivicultores de Mouriscas (COAGRIOLIMO) vem “espreitar” as quantidades que estão a entrar.
Evaristo Valente, o presidente da direção explica que o ano é mesmo muito fraco. “Em 13 dias de lagar moemos 50 toneladas. O ano passado em 13 dias já tínhamos moído mais de 120 toneladas”. E estes números, médios, não irão melhorar, pois, os homens da terra e que também têm as suas propriedades sabem bem como estão as árvores.
Um dos mais jovens que aguarda a sua vez para pesar a colheita diz “este ano está feito. Foi isto [e aponta para meia dúzia de sacos numa carrinha de caixa aberta]".
No cais o trabalho é simples. Descarregar os sacos para a balança onde uma funcionária [dos cinco do lagar em 2020] regista o peso para depois passar a fatura para pagamento do serviço. Depois de pesados os olivicultores despejam a azeitona num tapete rolante que a vai encaminhar para a tulha respetiva.
“Nós aqui não fazemos maquia no serviço. Pagam a ‘moenga’ a nove cêntimos e meio o quilo e depois levam o azeite todo. Ainda há quem trabalhe com maquia e cobre um valor mais baixo pelo serviço”, diz Evaristo Valente, explicando que a maquia é uma fórmula que existia para pagamento do serviço. O olivicultor deixava a azeitona e o lagar cobrava uma percentagem da produção do azeite. Ou seja, se um olivicultor tinha uma produção de 100 litros de azeite e a maquia fosse a 15%, 15 litros do azeite ficavam no lagar, que depois o vendia. Hoje, na COAGRIOLIMO não é assim. O olivicultor paga o serviço e leva o azeite na totalidade.
Voltamos ao processo, enquanto alguns olivicultores perguntam pelas fundas, se já se sabe a funda deste ano. Evaristo Valente diz que não. Explica que só moeram uma tulha e que a meio da semana (4 ou 5 de novembro) se iria saber a funda.
A funda é a produção. “É uma regra de três simples. Uma tulha tem, mais ou menos, 20 toneladas. Depois de ser moída, o azeite é apurado e pesado. Normalmente a funda anda ali pelos 12%. Quer isto dizer que por cada 100 quilos de azeitona há um resultado final de 12 quilos de azeite”, explica o presidente da COAGRIOLIMO e acrescenta [no meio de uns risos] “a malta fala mais em litros. Um litro de azeite são 916 gramas. Não chega a um quilo”.
Explicada a funda, descemos umas escadas entre as tulhas e o escritório. Entramos na zona mecânica onde o mestre do lagar Rui Silva explica os processos. O Rui é da vizinha aldeia de Queixoperra, concelho de Mação. Começa por mostrar o processo da ‘moenga’ como dizia o presidente.
Depois de fechada uma tulha, um depósito que armazena cerca de 20 toneladas de azeitona limpa, o fruto da oliveira passa por uma máquina de lavagem. Depois de passada por água entra num tubo em espiral que a transporta para as mós.
Este é um lagar tradicional, ainda trabalha com as mós cónicas, com capachos e prensas. As mós são umas pedras cónicas que pesam 1.200 quilos cada uma. “Esmagam a azeitona, não a trituram como outros moinhos que existem”, explica Evaristo Valente que diz ser esse um dos segredos para ter um azeite mais tradicional, mais encorpado. Para colocar as mós a “circular” o responsável diz que o motor nem é grande. “Tem dez cavalos. Não é muito grande”. Mas o sistema tem depois uma caixa redutora que transforma a potência em força. E esse é um dos problemas destes lagares. Se há uma avaria as soluções não abundam no mercado. Em 2019 uma avaria nesta caixa levou a que o lagar estivesse parado uns dias. É por ali que há uma das maiores atenções.
Voltando ao processo de moagem. Depois de a azeitona estar bem moída cria uma massa que é, através de um outro processo já mecanizado, espalhada nos capachos. Dois dos funcionários fazem esse trabalho. Capacho, massa, capacho massa. Desta forma até atingir o limite de altura.
O carrinho onde está esta “torre” que já “geme” uma água gordurosa só com o próprio peso é depois “encaixado” na prensa. E, lentamente, é apertado por forma a permitir que a massa liberte todos os líquidos que caem para as “tarefas”, uns depósitos que os acumulam.
Cada prensa demora um par de horas até comprimir, na pressão certa, os capachos. Assim que está concluído este processo os carrinhos passam para uma outra zona onde os capachos passam por uma outra máquina que lhes retira o bagaço, ou a massa seca da azeitona.
Esse bagaço é, normalmente, vendido para reaproveitamento ou para reutilização. Quer isto dizer que há empresas que ainda refinam a massa seca para poder extrair algum “óleo” que não foi totalmente retirado nas prensas.
Voltamos novamente ao lagar, e descemos mais uns degraus para encontrar o mestre Rui Silva de volta dos depósitos que está junto das prensas. “Aqui vem ter o líquido todo. O sumo da azeitona. Depois, num processo natural, o azeite [mais leve que a água] fica por cima e a água por baixo”. Rui Silva, com a mestria que tem, vai abrindo as torneiras destes depósitos para vazar as águas ruças, ou seja, águas com oleosidade que haverão depois de ter tratadas antes de voltarem aos circuitos naturais.
Este é um processo normal nestes lagares tradicionais. Há uma espécie de decantação do azeite. Num dos modernos, no final da linha sai o azeite por uma torneira e a água por outra. Aqui não, é um processo mais manual e que requer por isso a presença do mestre. É ele que vai vazando a água das tarefas até ficar o azeite.
Quando se fala em maior acidez do azeite, Rui Silva diz que pode andar num grau, ou oito décimas. Depende muito da azeitona, da qualidade da azeitona. “Quando menos tempo estiver em tulha melhor o azeite”, explica dizendo que se vier “diretamente da colheita para o lagar, o azeite poderá ter menor acidez”. E depois salienta que a acidez tem muito a vez com o sabor do azeite. Quando maior é a acidez, mais intenso é o sabor.
E neste campo temos gente para todos os gostos. “Já aqui tive um senhor de idade que reclamou a dizer que o azeite era muito ácido. E já tive uma rapariga, uma senhora de trinta e poucos anos [risos] que eu pensava que iria querer um azeite mais fino e foi o contrário. Disse-me que gostava de azeite com sabor, à moda antiga”.
A produção este ano é menor. Rui Silva diz que não está a trabalhar em contínuo. Moem uma tulha e param, até se receber mais azeitona. É um trabalho, já de si, sazonal, e esta campanha está a ser fraca.
Embora ainda não tenha o azeite novo [a 31 de outubro] Rui Silva não tem problema em responder à pergunta se os clientes ou curiosos que ali entram põem o dedo no azeite para o provar. “Antigamente faziam isso todos os dias [risos], mas agora há outras regras. Mas olhem ainda há quem o faça. Tenho aqui pessoas mais jovens que quando estou a pesar o azeite e perguntam se aquele é o deles. Quando digo que sim, ‘espetam’ o dedo no líquido e provam. E depois [gargalhada] dizem que já o avô fazia daquela maneira”. Mas as regras sanitárias, nos dias de hoje, são mais apertadas e limitam a presença de pessoas na linha de produção.
De regresso ao escritório, Evaristo Valente está de volta dos papéis. Vai olhando para a folha de cálculo onde tem os valores da campanha de 2019. Cerca de 750 toneladas. Este ano ficará mais aquém. Por isso mesmo o lagar tem apenas cinco funcionários. Uma na balança, três nas operações e o mestre. E mesmo assim não trabalham todos os dias seguidos. O ano é fraco. Por isso, entre os olivicultores, também já se fazem “apostas” sobre qual será o preço do alqueire de azeite. Uns dizem que ainda têm muito guardado de 2019, um ano farto. Outros lamentam o ano fraco de azeitona.
Com muita ou pouca azeitona, esta cooperativa, das duas existentes em Mouriscas, não abdica de moer a azeitona de forma tradicional, esmagando fruto nas mós de pedra. Por enquanto, aqui, ainda há a produção tradicional.
Reportagem e fotos: Jerónimo Belo Jorge