É consensualmente aceite que informação prévia acerca de um arco narrativo, particularmente do seu desfecho – spoilers –, arruína a experiência de consumir um livro ou filme. Contudo, e pese embora a intuição popular, os spoilers não só não têm o impacto negativo que se julga como podem, nalguns casos, aumentar, ao invés de diminuir, o prazer na leitura de um livro ou visualização de um filme. Conheça, neste artigo, os principais resultados científicos acerca dos efeitos dos spoilers e as teorias em torno do prazer no consumo de narrativas ficcionais.
Qualquer utilizador de redes sociais contemporâneas sabe que é regra consensual não divulgar pontos ou eventos críticos de um arco narrativo, particularmente o seu desfecho – ou, fazendo-o, ter a gentileza de o prefaciar previamente com o aviso de “spoiler alert!”. Por outro lado, consumidores de cinema, televisão e literatura esforçam-se activamente por, entre o ritmo frenético a que a informação se propaga na internet, se escudar de lerem ou verem inadvertidamente qualquer peça que revele o final do filme, série ou livro que ainda não tiveram oportunidade de degustar. Inclusive, existem hoje várias aplicações que permitem aos utilizadores filtrar preventivamente qualquer informação que possa constituir um spoiler (revelação prematura de informação acerca de uma narrativa com o potencial de estragar [spoil] o prazer que advém do seu consumo), praticamente um equivalente moderno de tapar os ouvidos e balbuciar para não ouvir algo indesejável. Porém, uma linha de investigação com já quase uma década tem mostrado sistematicamente que, pese embora a crença popular, os spoilers não apenas não têm o impacto negativo que se julga como podem, nalguns casos, aumentar ao invés de diminuir o prazer que advém de ver, ler ou ouvir uma narrativa.
Nos estudos fundacionais, investigadores da Universidade da Califórnia, San Diego, recrutaram pouco mais de 800 participantes para lerem alguns contos curtos de autores como John Updike, Roald Dahl, Anton Checkov, Agatha Christie, entre outros e, no final, para indicarem o quão aprazível foram as narrativas. A metade dos participantes, porém, foi dado previamente um pequeno parágrafo, em jeito de sinopse, que revelava, de forma aparentemente acidental, o final dos contos. Estes últimos participantes reportaram, consistentemente, um maior prazer e agrado com as narrativas, incluindo aquelas cujos desfechos eram, no âmbito dos contos, inesperados e surpreendentes. Numa sequência posterior de outras três experiências, os mesmos autores replicaram o resultado mostrando, além do mais, que spoilers revelados a meio do conto (isto é, antes de os leitores chegarem ao final) também aumentam o agrado pelas narrativas. Finalmente, spoilers feitos sobre contos com estruturas narrativas mais simples (contos de antologias infanto-juvenis), não parecem beneficiar de spoilers, ainda que esses também não diminuam o prazer da sua leitura.
Mas porque, ou como, poderiam os tão indesejados spoilers afinal serem benéficos? Antes de uma resposta mais teórica, note-se que vários amantes de leitura tendem ocasionalmente a reler o seu livro predilecto sem aparente impacto negativo por saberem de antemão o desenrolar da narrativa; o mesmo pode ser dito acerca dos entusiastas de cinema (eu próprio, não obstante as reclamações de familiares, já perdi a conta às vezes que revi o Parque Jurássico de Spielberg desde que o vi pela primeira vez, no cinema, aos 11 anos). Nestes casos, é inclusive comum as pessoas reportarem ainda maior agrado ao reler/rever obras predilectas, precisamente porque elementos da narrativa podem ser interpretados numa nova perspectiva somente possível a quem saiba o seu desfecho. No mesmo sentido, quando um livro popular é adaptado para cinema ou televisão, são comummente aqueles que leram previamente a narrativa (e que, por isso mesmo, já a conhecem de antemão) que se mostram mais entusiasmados com a adaptação, quando bem-sucedida (e.g., Senhor dos Anéis e as primeiras temporadas de Game of Thrones), ou frustrados quando a adaptação não respeita o arco narrativo original (e.g., The Witcher). Finalmente, obras clássicas do teatro, amplamente conhecidas pelo público em geral desde há milénios (e.g., peças de teatro da Grécia Antiga), continuam a ser ensaiadas e apresentadas, com público suficiente para o justificar. Todos estes exemplos mostram que o conhecimento prévio de uma narrativa, per se, não têm necessariamente o impacto negativo que se poderia assumir dada a atitude dos internautas face a spoilers.
Esta oposição entre, por um lado, uma certa intuição de que saber de antemão o desfecho de uma narrativa arruína o prazer do seu consumo e, por outro, alguns exemplos citados, em que reler/rever uma obra pode ser tão ou mais prazeroso que da primeira vez, possui um paralelismo com algumas teorias psicológicas acerca das razões pelas quais obtemos satisfação em contos ficcionais. A teoria clássica, consonante com a intuição popular acerca dos spoilers e apelidada de Teoria de Transferência da Excitação, postula que o prazer no consumo de uma narrativa advém de uma tensão vicariante que acompanha as lutas do(s) protagonista(s) face a obstáculos, desafios e/ou perigos, conquanto o seu desfecho seja incerto e desconhecido para o espectador; quando, tipicamente no clímax narrativo, essa tensão é resolvida (e.g., o herói vence o vilão, a última vítima sobrevive ao monstro, a protagonista consegue lidar com uma situação dramática, os amantes ficam juntos, etc.), é o ‘alívio’ da tensão que fornece o prazer e satisfação com a narrativa. Num estudo empírico clássico, crianças de 8 anos que viram uma narrativa audiovisual com maior suspense (dois irmãos que tentavam caçar e um leão feroz que havia morto pessoas da sua aldeia) e com uma resolução sólida (os irmãos conseguem vencer o leão) reportaram terem gostado significativamente mais da história que crianças que viram uma versão da mesma história com menos suspense (envolvendo apenas um leão ‘normal’) ou com uma resolução menos incerta (o leão foge e, no final da história, ruge à distância). Ainda que esta perspectiva teórica forneça uma base para a atitude negativa face a spoilers, falha em explicar a razão por que a visualização/leitura repetidas da mesma narrativa (ou, ainda mais evidente, a audição de uma mesma música, cujo prazer também tem sido explicado com base nalgumas versões da Teoria da Transferência da Excitação em que, por exemplo, uma progressão de acordes gera tensão, ao afastar-se do acorde raiz, ou resolução, ao retornar a esse) não diminua o prazer – facto que veio a ficar conhecido por Paradoxo do Suspense.
Em grande parte, na sequência dos estudos empíricos, já referidos, acerca do efeito de spoilers, os investigadores têm, recentemente, desenvolvido a chamada Teoria da Fluência de Processamento. De acordo com esta, a facilidade com que um consumidor faz sentido de um arco narrativo contribui para a sensação prazerosa que acompanha a leitura de um livro ou a visualização de um filme. Os spoilers, ao fornecerem alguma informação acerca do desfecho de uma narrativa, facilitariam a geração de um modelo mental acerca do arco narrativo, o qual, por sua vez, iria ajudar a um processamento cognitivo dos elementos narrativos e a uma maior apreciação da relevância de eventos e/ou diálogos que, numa primeira exposição, passariam despercebidos (processo apelidado de Ressonância do Modelo Mental). A título de exemplo, num estudo recentemente aceite para publicação, investigadores mostraram, a participantes que nunca haviam visto a série, os últimos dois episódios da série How I Met Your Mother, sendo que a alguns dos participantes mostraram a versão oficial – a qual, de forma inesperada, rompeu várias convenções para o género ao ponto de gerar uma onda de indignação por parte dos fãs – e aos restantes a versão alternativa – mais prototípica de uma série de comédia. Adicionalmente, os participantes leram, previamente, uma breve sinopse dos episódios que, nalguns casos, fornecia spoilers acerca do seu desfecho. Em conformidade com a Teoria da Fluência de Processamento, os spoilers aumentaram o prazer na visualização dos episódios para o final oficial mas não para a versão alternativa – presumivelmente porque, para o final prototípico, o final seria expectável e, por isso, em si mesmo fácil de processar; já para o final inesperado, conhecimento prévio acerca do seu desfecho facilitou o processamento do arco narrativo aumentando, consequentemente, o prazer da sua visualização.
Neste ponto, e para o leitor que se esteja a questionar se não só poderá, como deverá mesmo, começar a fornecer spoilers aos seus amigos, mesmo quando não requisitados, com a expectativa de lhes fazer um favor, não o faça! Ainda que as evidências empíricas revistas neste artigo sugiram que conhecimento prévio acerca do desfecho de um livro ou filme possam, nalguns casos, aumentar o prazer do seu consumo, estão também documentadas condições em que os spoilers têm o efeito contrário. Por exemplo, algumas dimensões de personalidade atenuam potenciais efeitos benéficos de spoilers, em particular a chamada necessidade de cognição – pessoas com grandes pontuações nesta dimensão tendem a procurar e privilegiar actividades intelectuais, como puzzles e quebra-cabeças, preferem consumir narrativas acerca das quais nada sabem e, quando expostas a spoilers, relatam menos prazer com a visualização/leitura da narrativa. Por outro lado, o efeito benéfico dos spoilers parece restringir-se a situações em que quem os recebe não os interpreta como tal – dito de outra forma, quando é óbvio que a informação recebida constitui um spoiler ou quando é explicitamente apelidada como tal, o prazer na visualização/leitura de uma narrativa diminui, ao invés de aumentar, em grande medida porque, compreensivelmente, as pessoas mostram reacções adversas quando percepcionam que lhes foi negada uma opção (Reactância Psicológica). Dadas estas advertências, se vier a questionar-se sobre se valerá ou não a pena ver no cinema o novo filme acerca do qual todos falam, não hesite em ler uma boa crítica pese embora as advertências de spoiler alert– no pior dos casos, terá um impacto bem menor do que antecipa e, no melhor, poderá aumentar a sua apreciação e prazer pela obra.
Nuno de Sá Teixeira