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Geologia: Um milhão de anos, uma migalha no tempo da terra

14/10/2023 às 10:07

No dia-a-dia, o tempo mede-se em horas, minutos e segundos nos mostradores dos nossos relógios de pulso. Na História, mede-se em anos, séculos e milénios, usando, para tal, pergaminhos e outros documentos com significado cronológico. Na Pré-história faz-se outro tanto com base em objectos vários e fala-se de milhares e, nalguns casos, de milhões de anos.

A escala do tempo dilata-se ao historiarmos o passado geológico e ainda mais se recuarmos aos começos do Sistema Solar e do Universo, onde os milhares de milhões de anos marcam as etapas percorridas com uma imprecisão que se esfuma nessa “eternidade”. Mil milhões de anos a mais ou a menos nos primórdios da matéria de que somos feitos representam o mesmo grau de imprecisão do milhão de anos a mais ou a menos no tempo dos dinossáurios, do mais ou menos um ano na história do velho Egipto, ou do mais dia - menos dia, mais minuto - menos minuto, no tempo que estamos a viver. No decurso da nossa existência revemos, sem dificuldade, o nosso tempo, o dos avós e até o da História, mas é com esforço que abarcamos ou evocamos a vastidão do tempo geológico, que só encontra paralelo na imensidão das distâncias astronómicas.

Como na História, também a Geologia necessita de documentos e esses temo-los nas rochas, quer sejam os fósseis, quer alguns dos seus minerais contendo isótopos radioactivos. Entre as variáveis susceptíveis de serem correlacionadas com o tempo, apenas duas – a evolução biológica e a desintegração radioactiva natural – têm lugar de forma irreversível, uma vez que, qualquer destes dois processos se desenvolve apenas num sentido. Porque de uma história se trata, a Geologia tem no tempo um dos seus pilares, sendo aí encarado sob duas perspectivas distintas: a de tempo relativo e a de tempo absoluto.

Na perspectiva de tempo relativo procura-se saber se um dado evento ocorreu antes, depois ou em simultâneo com outro, isto é, se lhe foi anterior, posterior ou contemporâneo. De há muito que as relações geométricas, observáveis no terreno, entre os diversos corpos rochosos aflorantes, têm sido utilizadas no estabelecimento da ordenação cronológica dos acontecimentos geológicos de que são testemunhos. Uma tal ordenação é particularmente evidente nas rochas estratificadas, nas quais os estratos ou camadas se sucedem numa imediata sugestão de sequência no tempo. Tal ordenação é a mesma patenteada numa pilha de papéis na secretária de um burocrata. A relação entre o empilhamento dos estratos rochosos e o curso do tempo chamou a atenção do dinamarquês Nicolau Steno, no século XVII, constituindo uma das primeiras ideias fundamentais da geologia, conhecida por Princípio da Sobreposição, segundo o qual, numa sequência estratificada não deformada, qualquer camada é mais moderna do que as que lhe ficam por baixo e mais antiga do que as que se lhe sobrepõem. Evidente à luz dos conhecimentos actuais, este princípio representa um avanço notável para a época em que foi enunciado. Nele se relacionam, pela primeira vez, as rochas estratificadas com o processo de deposição progressiva dos sedimentos que as integram, a que corresponde uma ideia de sucessão no tempo.

Como marcos cronológicos, também os fósseis, escalonados na cadeia evolutiva da biodiversidade, nos permitem uma abordagem do tempo relativo. No que se refere à evolução biológica, desde há muito que se constatou, através dos fósseis, que as espécies animais e vegetais do passado foram surgindo ao longo da história da Terra, se mantiveram durante períodos mais ou menos longos, acabando, quase sempre, por se extinguir, não voltando a aparecer.
Leonardo da Vinci (1452-1519) foi o primeiro a reconhecer os fósseis como testemunhos de outras vidas em épocas passadas. Até então e mesmo depois dele, os fósseis eram vistos como caprichos da natureza. Só no século XVIII se estabeleceu definitivamente a sua interpretação como restos de seres vivos do passado.

Os fósseis representam, assim, elos de uma cadeia de complexidade crescente. Neste entendimento, e graças ao muito trabalho dos paleontólogos, sabemos, por exemplo, que as camadas de rochas sedimentares com fósseis de trilobites são mais antigas (Paleozóico) do que as que conservam ossadas de dinossáurios (Mesozóico) e que estas, por sua vez, são anteriores às que serviram de jazida aos mamutes ou aos australopitecos (Cenozóico), nossos avós. Este raciocínio, aqui exemplificado para grandes intervalos de tempo, ao nível das eras geológicas, faz-se correntemente para intervalos mais curtos, como são os representados pelos sistemas (períodos), séries (épocas), andares (idades), subandares e outros ainda mais reduzidos. O mesmo tipo de conhecimentos habilita-nos a considerar geologicamente contemporâneas todas as rochas que, em quaisquer lugares, contenham os mesmos fósseis. Aplicável a muitíssimas espécies fósseis conhecidas, estes raciocínios têm vindo, a partir do século XIX, a permitir escalonar no tempo o conjunto das sequências de rochas sedimentares, onde se encontra o essencial do registo fóssil de toda a biodiversidade que nos antecedeu. E também em rochas metamórficas, num grau de intensidade relativamente baixo (anquimetamorfismo), como é o das séries paleozóicas de Norte a Sul de Portugal.

Na outra perspectiva, a do tempo absoluto, passível de quantificação, o tempo tem o sentido de duração e, assim, refere o intervalo que medeia dois acontecimentos ou o que decorreu entre um deles e o momento presente, isto é, a sua idade. Uma das vias mais frutuosas na medição do tempo geológico nasceu com a descoberta da radioactividade por Henri Becquerel, em 1896, e ganhou corpo com os trabalhos sobre a constituição e funcionamento do núcleo atómico levados a efeito por Marie e Pierre Curie e muitos outros físicos. Tais avanços da ciência, com reflexos na medição do tempo, foram sabiamente aproveitados por vários investigadores, entre os quais o geólogo inglês Arthur Holmes, que “só não foi prémio Nobel porque a Geologia não figura entre as disciplinas contempladas no respectivo regulamento”.

Executadas por rotina em muitos laboratórios de todo o mundo, as determinações de idade isotópica (baseada no comportamento natural de alguns isótopos radioactivos) de alguns minerais permitiram-nos enquadrar, em termos de cronologia absoluta, as grandes etapas da história da Terra a da Vida, muitas delas, de há muito definidas em termos de idade relativa. Sabemos hoje que o planeta Terra se formou há aproximadamente 4540 Ma, que os dinossáurios não avianos (as aves, hoje aceites como descendentes de um certo grupo de dinossáurios, são, assim, dinossáurios avianos) fizeram a sua aparição há cerca de 235 Ma e que desapareceram, de vez, há 65 Ma. Sabemos que o granito das Beiras tem à volta de 300 e que o de Sintra, apenas 85 Ma. E a lista de rochas e de acontecimentos de que conhecemos a idade absoluta é imensa e não pára de crescer.

O trabalho monumental empreendido pelos paleontólogos, ao longo dos séculos XIX e XX, permitiu, como se disse, um aceitável escalonamento no tempo, baseado nos fósseis, e o estabelecimento de eras, períodos, épocas e outras divisões temporais mais finas. Posteriormente, mercê dos avanços no conhecimento geológico e dos progressos da física dos isótopos e das tecnologias de análise, dispomos hoje de uma escala cronostratigráfica na qual, com pormenor sempre melhorado, as divisões temporais, baseadas nos fósseis, estão agrupadas em intervalos de tempo de diferentes hierarquias, cotados por valores numéricos referidos à unidade de tempo geológico adoptada, isto é, o milhão de anos (Ma), nada menos do que dez mil séculos, uma enormidade no horizonte temporal das nossas vidas, mas uma migalha no tempo da Terra.

Face à enormidade do tempo geológico, em que os milhões de anos são tratados pelos geólogos com a mesma ligeireza com que falam de anos das nossas vidas ou de séculos na história da humanidade, vale a pena reflectir sobre a ideia de milhão.

Para, numa balança de precisão, equilibrarmos um grama de peso, temos de lá colocar cerca de 62 grãos de arroz carolino. Uma regra de três simples diz-nos imediatamente que cem grãos pesam 1,61 g, que mil grãos pesam à volta de 1,6 kg e que um milhão deles perfaz cerca de 16 kg. Dito de outra maneira, precisaríamos de 16 sacos como os que actualmente se vendem no mercado, para guardar 1 000 000 de gãos desse arroz e ainda ficam de fora 100 g deste cereal.

Um outro caminho que nos conduz à ideia de milhão, é a de darmos uma badalada, por segundo, no sino de uma qualquer igreja. Então, para completarmos 1 000 000 de badaladas, teríamos de estar permanentemente activos, durante 11 dias, 13 horas, 46 minutos e 40 segundos, sem comer, nem dormir, nem descansar.


A.M. Galopim de Carvalho (geólogo)

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