Numa manhã de janeiro, entre tímidas gotas de chuva e ousadas rajadas de vento, fizemo-nos ao caminho até ao Lar de Santa Margarida, na aldeia de Santa Margarida da Coutada, em Constância.
A nossa motivação era simples: ir ouvir as partilhas de quem já passou por tudo, os saberes que já não se aprendem, as aventuras que hoje nos soam inenarráveis.
À nossa espera estava um grupo de idosos sentados em redor de uma toalha de memórias: um crucifixo, uma colher de pau, uma pandeireta, um chocalho, uma cesta de piquenique e também um ramo composto de folhas de oliveira, rosmaninho, louro e outras plantas que aromatizavam o ar.
Objetos despertadores de conversas que, mais do que para passar o tempo, soltam as lembranças que estão guardadas no coração.
Momentos tão simples como aqueles em que a dona Ilda, de 90 anos, via a mãe a espalhar “defumadores com alecrim, alfazema e arruda pela casa”, para afastar as doenças porque “na altura não havia médico”. Logo ao lado, outra senhora lembra as orações a Santa Bárbara - rezas que se faziam para afastar “barulhos estranhos” e “curar as trovoadas”. Fala-se em colocar pedrinhas de sal nos quatro cantos da casa para mandar embora os maus espíritos e chama-se à conversa a “costureira”. Ilda vivia na zona do Crucifixo (Tramagal) e diz entre risos que ela andou lá por casa: “quando caía alguma coisa para o chão, quando havia um barulho, a gente dizia 'lá anda a costureira'. Porque ela prometeu uma promessa e nunca a cumpriu e agora anda por aqui a cumprir”.
Sentamo-nos na cadeira do lado e encontramos a dona Irene, nos seus joviais 97 anos acompanhados por um brilho no olhar, enquanto relembra o escasso tempo em que foi à escola só aprender a fazer o nome porque “éramos muitos irmãos e o pai não podia pagar a escola a todos”. Irene conta que foi trabalhar com 11 anos, a ceifar ervilhaca: “ganhava 25 tostões”. Fazia também queijos de cabra e ovelha. “Às vezes era 1h da manhã e estava eu a fazer queijos”.
As lágrimas caem-lhe quando se lembra das filhas. Destaca o momento em que se deu o 25 de Abril de 1974. “Tinha as duas filhas em Lisboa e uma delas morava em frente ao palácio. Depois das onze horas nunca mais soube nada delas”.
Foi tema vincado nesta partilha o 25 de Abril. A maioria diz que não houve grandes agitações no campo e que o dia seguinte foi de trabalho. Noutros casos, a situação foi diferente, como nos conta Hermínia, que trabalhava em Portalegre numa fábrica de tapetes. “Nós, mulheres, a primeira coisa que fizemos foi tirar aquelas toucas que se usa na cozinha, fizemos uma fogueira e queimámos todas”, diz-nos, desabafando que “só Deus sabe da minha alma e da minha vida... cheguei a trabalhar com a guarda à minha beira”.
Depois de um silêncio, chama-nos a atenção o sorriso bem disposto do senhor António Veríssimo. Lembra-se de ir a Constância fazer o exame da quarta classe “de fatinho”. Era um momento importante para o jovem rapaz de Portela de Santa Margarida, que diz com orgulho que “correu bem. Passei.” Depois, foi para servente na Metalúrgica Duarte Ferreira, em Abrantes. “Lá ganhava-se melhor do que no campo, mas depois saí de lá porque os meus pais entenderam que não devia lá ficar”. Ingressou no campo militar e aí esteve “quase 40 anos”.
Dois utentes do Lar de Santa Margarida a partilhar as suas histórias de vida
Nestas conversas informais, entre temas mais sérios e outros mais ligeiros, ouvimos Maurícia Carmo, 73 anos, de Vila Nova da Barquinha mas criada na Amoreira (Abrantes). Fala-nos das rivalidades que havia com Montalvo. “Eram os parolos de Montalvo”, diz-nos a rir. Mas a expressão muda quando o caso se torna sério: namoricos entre uma rapariga da Amoreira e um rapaz de Montalvo “não jogavam bem”. Daí que, depois de ter sido criada num colégio de freiras, tenha casado com um moço da Amoreira... mas segreda-nos que a sua vontade era voltar para junto da mãe, para o campo, porque era isso que faziam as “mulheres de trabalho... tive que aguentar”. Mas se pensávamos já ter ouvido tudo, a surpresa foi maior quando nos contou que teve um filho que nasceu com sete quilos: “parecia já um cachopo grande”.
Entre o espanto e a incredulidade, a conversa puxa para o amor. Se há algo que não surpreendia na altura era um amor durar a vida toda. Assim foi com Lisete, que aos 81 recorda o primeiro namorado, com quem casou, e admite: “andar com segundos e terceiros era uma coisa que não era bem vista”. Já com Maurícia a situação foi diferente: “bati a asa e tornei a bater a asa, que ele não prestava, e mandei-o para a mãe dele e voltei para a minha mãe... e depois arranjei outro”.
Lágrimas, sorrisos e saudade marcaram esta partilha de vivências
Continuámos manhã dentro pelas histórias do campo: de quem passava o verão a cultivar o cânhamo ou de quem conseguiu “escapar”, como o senhor Francisco, de 86 anos. Trabalhou em serrações, no tempo em que “os animais era a gente” e foi um dos trabalhadores pioneiros da CAIMA, em Constância Sul. “Estive lá 50 anos, trabalhava com as turbinas”. Falou-nos também das histórias que havia na altura de existirem armas escondidas do Estado na zona de Santa Margarida: “diziam-nos para andarmos com cuidado que havia para aí armas escondidas. A gente andava por aí na mesma, não tínhamos medo nenhum”.
Fomos depois até Mação e descobrimos a dona Maria Luísa, que, apesar de já não saber a idade, não esquece que é natural da aldeia do Pereiro, a terra das “festas em honra de Nossa Senhora da Saúde” em que as flores embelezam as ruas. Diz que é “uma festa como aquelas que se fazem nas aldeias grandes” e recorda os tempos em que participava, além do trabalho na resina: “das árvores para o caneco, do caneco para a lata, era assim”.
Eram assim, outros tempos em que, por exemplo, se tinham os filhos em casa e em que vinha a parteira ajudar. “Antes era assim, hoje é um luxo”, diz uma das senhoras.
Outros tempos em que ter a despensa cheia era uma utopia e em que “até se comiam ovelhas infestadas”, conta-nos o senhor Joaquim, que se recorda das pestes que atacavam os animais, o seu único sustento.
A nostalgia, as recordações de momentos que já não voltam, as emoções que dali surgiram e a vontade de partilhar histórias, com mais ou menos sentido mas repletas de significado, foram o resultado da iniciativa “Estórias & Memórias”, que deu voz às vozes da sabedoria.
ESTREITAR OS LAÇOS DA INTERGERACIONALIDADE E VALORIZAR OS SABERES ANTIGOS
A iniciativa promovida pelo Município aconteceu nos lares de São João e de Santa Margarida, ambos da Santa Casa da Misericórdia de Constância
A iniciativa “Estórias & Memórias” é dinamizada pelo Município de Constância, através do Museu dos Rios e das Artes Marítimas, e pretende promover o envelhecimento ativo e perpetuar o conhecimento dos mais antigos junto das gerações mais novas através da recolha imaterial junto da população idosa.
Anabela Cardoso é técnica superior no Município de Constância e foi a guia desta iniciativa que aconteceu nos lares da Santa Casa da Misericórdia de Constância.
Pós-graduada em património cultural imaterial, Anabela foi também autora do recente livro “Tradição Oral do Concelho de Constância”, uma edição do Município que descreve algum do património imaterial da região: adivinhas, rezas, lendas, trava-línguas, provérbios.
Em declarações ao Jornal de Abrantes, explica que todos os anos percorre os lares de Constância para fazer “recolha de património imaterial, vou às oralidades, vou às estórias, lendas e histórias de vida”.
Nesta recolha onde é fundamental “falar com as pessoas de mais idade, dar-lhes atenção”, Anabela confessa que acaba por ganhar “amor e amizade por estas pessoas, porque nós vamo-nos apercebendo de que, dada a sua idade, umas vão desaparecendo”.
A ideia principal é “no museu, termos uma base de dados onde possamos ter estes testemunhos”, evitando que tradições, rezas, mezinhas e diversas oralidades caiam no esquecimento. E a procura de pessoas é constante: “se eu sei que uma pessoa trabalhou no campo e cantava muito bem, eu vou a casa da pessoa procurar a história”.
E o impacto destas iniciativas é visível quando nos conta momentos como este: “ o ano passado vim cá [ao lar de Santa Margarida] e trouxe muitas plantas, para eles sentirem o aroma, e conforme ia falando das ervas ia dando. Estava uma senhora que fez um bouquet zinho e estava-me hoje, um ano depois, a dizer que ainda o tem no quarto”.
Reportagem: Ana Rita Cristóvão
Fotografia: Carolina Ferreira